9k=
 
Pindorama, 22 de abril de 2018
 
 
À
Carta do Descobrimento
 
 
Prezada Carta:
 
Há muito tempo, no ano de 1.500,  você saía das mãos do seu genitor, Pero Vaz de Caminha, da Terra de Vera Cruz (hoje Brasil) para as mãos do Rei D. Manuel-I, em Portugal. E você contava maravilhas desta bela terra “descoberta”, quando o ilustre navegador, capitão-mor da frota portuguesa, Pedro Álvares Cabral, se encontrava à deriva, por conta de uma calmaria sem graça que resolveu estragar sua expedição para as Índias.
 
Todavia, como se diz por aqui, tem males que fazem bem. E foi o que aconteceu naquele dia “fatídico” de 22 de abril, quando, sem acreditar, acreditando, Pedro Álvares Cabral avista um monte que além de sinalizar terra firme, indicava a porta para o suposto Paraíso Tropical. Foi assim que ele se rendeu juntamente com todos daquela frota composta de 13 embarcações.
 
Pois bem; para não me alongar muito, falarei aqui de três relatos seus que, mesmo depois de 518 anos, ainda fazem sentido para nós. Vamos começar pela troca, melhor dizendo, pelo escambo – o primeiro registrado nestas terras, a exemplo da pedra verde que você diz que um índio usava no beiço furado, e  acrescenta: “um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho,” pois, segundo você, tal pedra não tinha valor algum. Será? E por que fizeram questão dela?
 
 Agora, vamos a outro ponto que é quando você relata momentos prazerosos vividos na bela terra do Novo Mundo, e que descreve parte das riquezas naturais, como se estivesse num verdadeiro paraíso tropical: “Ali ficamos um tempo, bebendo e folgando, ao longo dela, entre esse arvoredo, que é tanto e tamanho e tão basto e de tantas prumagens que homem as não pode contar.” Depois disso, você afirma que as águas são infindas e conclui: “E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.”
 
Minha querida Carta, com relação ao parágrafo acima, eu sinto muito por lhe contrariar, pois hoje em dia seria impossível você, ou vocês, ou qualquer outra alma (mesmo desta terra) ficar “bebendo e folgando” num campo aberto ou  fechado, sem que seja importunado. A brutal violência não permite usufruir desse direito. E, infelizmente, o arvoredo ficou tão escasso que tememos futuramente só encontrar “área verde” na bandeira nacional. Com relação à agua, não é nada diferente.   Aliás, vivemos na ‘Era das Transposições`. Talvez você não entenda. Tem coisa que é melhor não entender.
 
Quanto ao terceiro ponto, vamos retomar aquela parte muito interessante, acerca dos costumes dos indígenas desta terra, que até hoje nenhum nativo, nenhum brasileiro consegue esquecer. É quando Pero V. de Caminha (seu genitor) manda você relatar algo assim: “Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam nenhuma coisa cobrir nem mostrar suas vergonhas;” vez que tudo isso sempre foi fruto de muita inocência, como você mesma afirma depois. E reconhece que não havia do que se envergonhar.
 
Mais uma vez, minha querida Carta, vou lhe deixar triste; porque saiba você que se esse “andar nu” dos indígenas fosse a maior vergonha desta terra, nós todos poderíamos afirmar com letras garrafais, que esta nação seria o SEGUNDO  PARAÍSO. Porque a nudez dos INDÍGENAS, que bem sabem se vestir de ÉTICA, está bem distante, bem além da falta de caráter que tem contaminado os Homens Grandes deste país, que vocês resolveram, por acaso, “descobrir”.
 
Assim, despeço-me com uma confissão: acho bonita a forma como você se dirigia ao chefe da sua nação, digo, ao seu rei, quando declara: “Beijo as mãos de Vossa Alteza”.
 
Pena que por aqui alguns “súditos” sejam mais dignos do que o próprio rei. Isso, de fato, não faz mais sentido.
 
Atenciosamente,
 
 
Carta da Decepção
 


Imagem: Internet