CARTA PARA CHICO BUARQUE

Quando me tornei seu fã, eu ainda era uma criança. Um quase adolescente que já sentia nas veias esse anseio de cidadania que ainda não tinha nome. Nem podia, naqueles anos de ferro da ditadura militar. Fui filho de um capanga da ditadura. Um funcionário da Polícia Federal que se dava o poder de polícia para cometer crueldades contra quem parecia ser contra o regime. E naquele tempo, qualquer funcionário das Polícias civil, Militar, Federal ou das forças armadas tinha mesmo poder de polícia. Portava armas e algemas com as quais ostentava o poder da maldade contra quem não comia em suas mãos. Acompanhei, caro Chico, a sua coragem de cantar a liberdade; a cidadania ainda não batizada com esse nome; a democracia como regime de governo. Com você, outros gênios ousados da canção, como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Elis Regina, Gal Costa, Geraldo Vandré e mais alguns com quem sou injusto por me falhar a memória, sem contar os contestadores de outras áreas, que sofreram a mesma perseguição política truculenta e sanguinária que vocês.

Mas você, meu amado Chico; sempre foi o meu gênio-mor. Meu exemplo maior de perseverança por um país livre; democrático. Talvez o único que, em nenhum momento, achou que já estava bom. Continuou teimoso em sua lida pelo país sonhado por milhões de brasileiros de alma livre; pensamento libertário; inquietação legítima por sonhar com um Brasil de todos; não de tolos. Nem só daqueles que dominam. Um país que ninguém domine, mas que seja vivenciado em toda a sua plenitude, como a mátria e pátria de qualquer cidadão. Sei, no entanto, que você só não contava que, tantas décadas depois da sua vitória musical, escrita e atuada sobre a ditadura, uma parcela tão grande da população se revelasse amante ferrenha da própria; saudosa dos tempos de torturas e assassinatos oficiais (alheios). O que foi instaurado por um golpe, acaba de ser restaurado pelo voto. Ou seja; a ditadura contra a qual você tanto lutou foi eleita pela democracia. Eu, igualmente, não contava.

Mais assustador nestes tempos contraditórios é o fato de que, essa mesma massa que hoje grita como papagaios contra o que chama, por estar teleguiada, de doutrinação, é doutrinada de forma vergonhosa por seus donos ideológicos. Senão vejamos: milhões de componentes dessa massa eram seus fãs até agorinha. Aí chegou essa nova turma do poder público e ordenou: “Não sejam mais fãs do Chico”. Obedeceram prontamente. Mesmo ainda sendo, incubados, deixaram de ser fãs declarados. Publicamente, passaram a ser inimigos. E o chamam de viado, pelas ruas, o que só é ofensa pelo termo ou tom pejorativo, mas não é ofensa ser chamado de gay, mesmo você não sendo. Sabe por quê? Porque os gays, amado Chico; masculinos ou femininas, têm se revelado as pessoas mais conscientes, inteligentes, corajosas, bom caráter e consistentes deste país que as inveja mais do que detesta.

Estou contigo, Chico. Eu te amo por tudo que você foi e é para o lado bom deste país. Também julguei que o lado bom (cidadão, livre, pacífico, solidário, consciente, sem preconceito...) fosse maior, mas tudo bem. Tenho orgulho de estar no grupo menor. E de ter sido derrotado em meu voto. Depois deste artigo, também me chamarão de viado. E também não me importarei. Independente de por acaso ser hétero, eu ficaria honrado em saber que tenho a mesma consciência cidadã; a mesma coragem, inteligência, consistência e o bom caráter dos gays. De forma tão evidente, os desta geração.

Demétrio Sena
Enviado por Demétrio Sena em 19/04/2019
Código do texto: T6627433
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.