Muito dengosa você é...

Muito dengosa você é. Moída por aventuras tão humanas e tão absurdas. Você é feita de dengos e teimosias. Mas é plácida e loquaz. Guerreira na hora certa, voluntária de sempre, tímida de fazer corar. Mas, que fazer? - Muito dengosa você é - dizem lá no seio das plantações de amor.

Enquanto sento no bar da minha vila e beberico o último aguardente só uma imagem me vêm afoita, sobreira e algoz.

Vem você, carregada de esperanças, procurando semear alguma coisa que lhe passe à frente e te faça mais soberba. E, subitamente, como raio que se dispara contra a montanha, você me vê. Sou desfeito, carregado de nuvens, uma escadaria ventosa, sem fim, como escorrega de criança que te leva não se sabe onde.

Troveja em sua alma. Ecoa na minha. Diabruras dos deuses embriagados!

Não posso compreender as controvérsias do tempo.

Ele é tão veloz e afoito, carinhoso e alheio às boas plantações, que me reluz só em pensá-la como mulher de minha vida.

Muito dengosa você é. Sei que não há homem sem pecado, nem mulher santificada.

Mas, sei que dentro de erros e acertos, sempre existe uma estrela que surge ao amanhecer para lhe acalentar ou para fazer altivar mais sua agonia de querer.

É bem simples quando não se faz parte. É muito comum quando você só assiste. Mas quando você é agarrado por um redemoinho, você se mistura. Não sabe contar os dias, nem calendário de bolso você tem.

O tempo é agora, meio-dia, meia-noite, que importa, se chova ou faça sol? - Mas, dengosa lá você é.

E me penso cáustico e imponderável. Por que as coisas certas, às vezes, nascem ao contrário? Por que a luz descabida segue um caminho tortuoso até alcançar o nosso querer?

Se você procurar explicações no tempo, nem meio-dedo vai achar. O tempo não existe. Ele, de vez em quando, para para sentir seus efeitos. Se fez por bem está feito, se por mal fez, não há arredios.

- Mas lá dengosa você é.

E por que tantos rodeios? Tantas metáforas e contas vazias? Já sei o que quero. Quero enxergar todos os lados e descrevê-la como um mínimo de senso e aprendizado rápido de compor alguma coisa que lhe caiba.

Um sapateiro que cerzi seu trabalho, com maestria e, ameno, avança diante do couro amaciado.

E tenho eu coragem de me discernir? Na tarde que me pajeia, procuro tirar máscaras invisíveis que cobrem meu rosto.

Mas cadê o discurso, cadê o afeito, os condizentes, as palavras de amor, as sobremesas, os convergentes acentos que comporão a vida de mulher sofrida, temerosa e afeita, a que devo falar e há em mim pouco a sobrar?

Só tentativas e desvarios.

Mas vou tentar até conseguir - como um mendigo que sorri ao ver uma moeda. E de tanto falar, nada disse que acrescentasse.

- Mal conselho José! Ela é freira, ardor, anjo, meiga, ou uma flor aesmada de tão profundos sulcos que me desarmam só em fitá-la !

Mas, não estamos aqui pra isso. E nesta carta sem valor, sem mapas e bússolas, sem maravilhas ou acorrentadas palavras o que consegui, no meu afoito de dizer e descrever?

Nada discursei de valor que a você retratasse. E por isso, fecho todas as portas de meu alpendre, e digo, até!

Mas, volto logo para compor uma sonata de duas notas.

E sei que lá no fundo, bem lá no fundo - e isso posso resumir - dengosa você é!
José Kappel
Enviado por José Kappel em 17/06/2019
Reeditado em 30/09/2019
Código do texto: T6674964
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