Cartas avulso

Lathoy, aos 25 de Maio de 2004

Caro amigo,

Acabei de receber o seu livro. Agradeço, desde já, esse seu gesto tão amável, como a sua preocupação em saber deste meu estado letárgico.

De momento, nada mudou! A vida segue o mesmo rumo aquando da nossa última conversa que, decerto, recordará. Continuo enclausurada no vazio de uma paisagem que, agora, acho insípida, descorada. Outrora, os seus verdes glória, os pastos a perder de vista, apascentavam-me a alma. A folha branca em que, sempre, me refugiei na pureza da sua alvura, já não me acolhe. As portas desse refúgio estancaram-se; assim como os brancos muros que, antes, me protegiam, desvaneceram. Essa folha que, sempre, me serviu de lar... não! Seria próprio dizer: de confessionário, cerrou as cortinas, e o castigo torna-se pungente.

Agora, desta pena, saem versos negros, gris... carmins! As vagas, agitadas, elevam-se dos confins do âmago e deitam-se em papeis sofridos; esta tinta que camufla amores contidos, desvairados, enraizados nos meus jardins, são esboços azedos trocados por parcos centavos. Como me pesa este silêncio!

Estranhará, com certeza, a aspereza do papel em que lhe escrevo, tão breves linhas. A razão, meu caro, é válida. Fi-lo para ouvir o arrastar da pena; ouvir o seu ínfimo gemer que escorre por entre os espaços brancos desta folha e, assim, matar um pouco o que me atormenta.

A vida, os passos agitados dos transeuntes, as luzes... A cidade chama-me, meu caro. Decidi, pois, voltar à algazarra do passado. Deixar esta casa, para sempre, ou, talvez, até que a minha inspiração retorne.

Neste momento em que lhe escrevo, oiço o tímido pipilar dos pardais pousados nos ramos das cerejeiras do meu quintal, o roçar do vento nas pesadas cortinas de veludo verde que impedem o sol de adentrar no salão. É a hora da sesta. O tempo dorme ; menos as cigarras que me fazem companhia. O tempo! Ah, o tempo! como escorre por entre os meus dedos! Teria que me isolar nas ruas calcetadas de burburinhos, num café mundano, ou numa das "brasseries" da cidade, para conseguir levar a bom porto o meu batel desgovernado. Estas ondas agitadas onde naufrago, estas brumas que me cegam, impedem-me de terminar o desafio que me alvitrou, e que, eu, vivamente, aceitei... ali, está, num canto, tão perdido quanto eu.

E invadem-me as lembranças das nossas longas conversas, noite afora, o seu claro desejo de abandonar a cidade, e refugiar-se no manto traidor da tão almejada calmaria. Não o invejo! O canto dos grilos, que escorre pelos muros nocturnos desta casa, ecoa na minha mente e aflige-me. Torna-se insuportável, ouvir na madrugada, esses lamentos trajados de azeviche. Talvez seja a angústia, a falta que eu tenho de voltar a refugiar-me numa alva folha de papel. Sem ela sinto-me perdida, órfã... uma maltrapilha sem destino. Os risos sibilantes das crianças já nem se abeiram ao peitoril do meu seio, tão receosos se devem sentir ao ver a amargura estampada no meu rosto.

Faltam-me os dias e os céus plúmbeos, melancólicos; falta-me o frio da noite e o aconchego das minhas magras letras. Faltam-me os meus longos passeios pelos trilhos do espírito; as horas em que eu escrevia, sem pena nem tinteiro, nos prados verdejantes, nas montanhas, nos galhos secos das árvores, na frágil corrente dos riachos. Tanta falta que me fazem esses passeios!... Sinto-me, fisicamente, miserável, os braços cansados de suportar o peso deste marasmo.

Falou-me dos seus apertos, dos seus desalentos... Se pudesse saber dos meus!...

Não o amofino mais com os meus dissabores. Por ora, afronto este sol fulgente que me seca a nascente, que me inquieta, e deixo-me levar pela correnteza do passar das horas, até que a inspiração volte com os meus atros e invernosos dias.

Sempre sua,

Cristina