Carta a um Deus
Chega-me aos olhos o teu verbo.
A tua velha cartilha.
Apresenta-se como sempre: um acaso que não era ao acaso.
Parece arbitrário mas é sempre um propósito do destino.
E o fato é de fato uma constatação: sempre estarás!
Assim sendo, não sei o que fazer com minhas pernas. Torneá-las pelo prazer estético ou amputá-las pela inutilidade?
Com quem falavas?
Deus está ali do outro lado, nos templos, nas esquinas, nos açougues - agonizante e exposto - sobre o balcão.
A droga que te libera é saber-se fora, saber-se passageiro e atemporal. Não importa então o leito. Nem o leite. Alimento ou dejeto? Sentimento ou desejo?
Os dias vão-se e as relações distanciam-se. Há dispersão de sabores.
Novos dias e redescubro-me em cores e acordes. Em texturas.
Redescubro-me forte, na intenção de dias mais leves.
Resdescubro-me frágil, na frigideira das más palavras, empanada e frita, minha angústia em bolhas, minhas sardas.
O pranto descontrolado no banheiro alivia-me a alma como se fosse uma punheta espiritual. Ainda assim, a duvida é um fio de cabelo sinuoso e insinuado no azulejo rosa.
Se és de fato Deus, soluciona-se o mistério e resta-me apenas prosseguir. Uma cruz menos pesada, uma certeza a mais, seriam duas. E nós? Seríamos um.
Mas é tão divino quanto insano. E a dor não cessa.
Nunca cessa.
Quando de fato terei paz? Só há paz na inexistência.
Na tua ausência.
E ainda assim, tu estarás, como sempre, na eterna busca.
Acreditava tê-lo encontrado, mas... escapa-me entre os dedos como areia.
Tu quem és, meu anjo negro - perdição ou glória?