Jogo da Dor

Olá pessoas, estamos iniciando mais uma noite no quadro “Cartas do presente, pesadas demais para serem lidas no passado”, eu fiz nova seleção e gostaria de abri-las com vocês. Vamos aos sortudos... (eu pego cartas enviadas pelos meus admiradores).

(Abro a primeira carta)

“Eu tenho feito tantas coisas para te ter de volta, tenho mandado flores para seu trabalho, tenho mandado músicas para seu celular, tenho escrito poesias dizendo o quanto tenho sonhado contigo. Eu adoraria ter uma chance de te encontrar. ”

(Abro uma carta de resposta, escrita por mim)

Vamos agora a minha carta de resposta.

“Nossa, muita gente já fez isso por mim, tenta outra. Eu acabei de ser demitido de meu emprego, meu chefe descobriu que eu sou gay e coincidentemente disse que meu rendimento estava abaixo da média da empresa, então muito provavelmente é ele quem está recebendo estas flores que você mandou. Beijos, continue me amando, mas de longe. ”

(Abro a segunda carta)

“Cara, quando eu te vi naquela noite no clube eu imediatamente quis estar perto de ti, poder te tocar e beijar você. Mas por favor, não conta para ninguém isso, não sei se ficaria aceitável, eu meio que tenho receio das outras pessoas saberem, sem falar no quanto é estranho falar destas sensações para ti. ”

(Abro outra carta de resposta)

“Amado se você tiver alguma chance, primeiro pega na mão e assume, depois pode apostar que eu não estou muito ligando para essas ‘sensações’ suas. ”

(Abro a terceira carta)

“Eu tenho me reerguido, tenho mais posses, mais dinheiro, posso te dar o quanto você quiser...”

Olha, agora você está me chamando atenção, (risada debochada) “Meu filho...” (pausa na leitura) “você...” (o tom da voz se abaixa) Nossa, está aqui é a minha preferida.

“... É uma das coisas mais importantes para mim, eu tenho outros filhos agora, mas posso te dar o que você quiser, o que você precisar. Eu nunca pretendi ficar assustado logo depois de perder meu emprego. A responsabilidade estava exatamente em minhas mãos, você era apenas um bebê e saber que eu não conseguiria estar do lado de sua mãe, do seu lado, quebrou meu coração. Eu precisei pegar tanto dinheiro emprestado que eu já estava devendo meu próprio pescoço, não poderia arriscar as suas vidas.

Depois disso eu voltei alguns anos mais tarde e ao sair contigo descobri que você é homossexual, aquilo me rachou e eu não sabia o que fazer mais uma vez, então eu evitei de queimar a nossa relação em troca de nada, eu fiz exatamente aquilo que eu já tinha me acostumado... fugir de novo.

Nem todo o sangue que tenho será capaz de nos devolver o tempo perdido, nenhum dinheiro no mundo será capaz de recuperar tudo, mas eu posso te dar o carinho que você tanto precisa e até grana também, deixei tudo escrito em seu nome. Eu apenas queria me desculpar por todos estes anos jogados fora. Eu precisava me comunicar contigo, pedir um encontro e tentar também dizer a sua mãe o quanto eu sinto muito.

Eu realmente sinto muito! ”

Bom gente, para esta carta em especial eu tenho uma resposta mais pertinente.

(Abro a última carta de resposta)

“Bom pai, tem um bocado de coisas aqui que eu tenho que concordar contigo. Você sempre esteve do outro lado da margem. Independente dessas singelas palavras, nada vai recuperar a sua ausência, que tipo de pai faz isso? Com a pouca força que tenho posso te garantir ao menos uma coisa, de minha mãe você não chega mais perto.

Afinal, o coração dela já não sangrou o suficiente para você?

Em todos os espaços que você deixou vazios precisei me doar para os preencher, em todas as lágrimas de minha mãe eu precisei estar lá para permitir que elas caíssem em meus ombros. Todas as vezes que estávamos passando fome, foi o nosso suor que foi desgastado e isso nos fez tanto bem, então eu preciso sim te agradecer, finalmente o meu pai me ensinou algo.

Gostaria de dizer em sua cara o quanto aqui foi um inferno por só ter a gente para se proteger e sim, eu sou um cabra viado. Se você pensa que vai vociferar desculpas se enganou, e eu... eu quebraria qualquer relógio para voltar ao nosso único passeio na praia, aquele que você pensou que eu era apenas uma sexualidade, menos qualquer outra coisa.

Eu lembro que chegamos na praia de Atalaia, em seu carro, eu tinha o que? 16 anos e estava até animado com a certeza de que você ficaria para o resto de seu tempo. Você estacionou o carro e esperou eu sair, ainda estranho comigo chegou próximo, e em um momento do toque inesperado seu corpo se desviou do meu, numa tentativa assustada de se desfazer daquilo o quanto antes.

Ao pisar na areia eu senti algo diferente, era como se eu estivesse mais conectado a ti em uma terra produzida pela natureza. Ao mergulharmos no mar pude admirar a beleza de teu sorriso que escapulia como um ser perdido na água, e tão mutável quanto ela. E finalmente voltar para a areia, sentar e contar para ti sobre a minha vida... pelo visto você só ouviu a palavra gay.

Subitamente eu fechei os olhos e respirei, engoli e guardei dentro de mim. Pareceu que você jogou mais água em mim do que o próprio mar, e nela eu me afundei, em mais um vazio criado por ti, o qual eu necessitava segurar em qualquer galho seco para retornar a superfície. Quer saber?! Não me importa mais, a ostra aqui voltou a se fechar para proteger o último grão de areia na esperança de que ele algum dia vire uma pérola.

Eu queria voltar para casa contigo tantas vezes, eu queria ter aprendido coisas tão impossíveis de fazer, mas que contigo pareceriam um nada. Eu trocaria tantos momentos felizes, músicas, bebidas, para repetir aquele nosso dia, porque ele era nosso, porém, mais uma vez a sua escolha foi de se ausentar das responsabilidades.

Quer conversar sobre responsabilidades agora? Você deve estar ciente que a minha irmã, que também passou tudo isso conosco, se casou teve uma criança e tanto ela quanto o marido se foram. Imediatamente eu pedi a guarda do meu sobrinho, ou como posso chamar: filho.

Enquanto ele estiver em meus braços vou garantir que ele se sinta seguro, vou garantir que meu toque não seja estranho para ele, mais ainda, que o toque dele não seja estranho em outras pessoas. Vou ninar as canções que ele amar, e farei de tudo para estar ao lado dele nos primeiros passos. Espero ter a possibilidade de ficar nervoso quando eu não souber responder alguma atividade escolar, afinal ele terá inspirações na vida e eu farei de tudo para ser uma destas.

É impressionante como você não cita minha irmã em sua carta, é realmente inadmissível tentar esquecer o fato de que você nunca assumiu seus erros, e tenta justificar com tentativas frustradas de demonstrar sua culpa. Eu quero dizer que sua luta não deveria começar com minha família, ela deveria dar início com a sua cura de si mesmo, não pense que estou aqui para dificultar sua jornada, mas sim para te situar que agora existem sete palmos de terra acima de ti, sugiro começar por ele.

Mas quer saber, é tarde demais para estar em casa, ainda que com todas as suas pedras de ouro, ainda que com cachoeiras de diamantes... NÃO! Não dá para resgatar isso como se fosse um bilhete de loteria. Neste nosso jogo de quem sangra menos você saiu do tabuleiro antes mesmo de começá-lo, então adivinhe quem ficou com a dor por inteiro?”