Acheronta Movebo. Mais uma carta para uma amiga

Acheronta Movebo

Em 1900 Freud fundou a psicanálise com a publicação da obra que ele próprio considerava a mais importante: A interpretação dos sonhos. Trazia como epígrafe o verso 878 extraído do livro VI da Eneida, daquele que seria a voz da razão de Dante Alighieri. Se Dante considerava Virgílio um mestre, Sigmund partilhava da mesma opinião.

Flectere si nequeo superos, Acheronta movebo

Uma das possíveis traduções dessa frase, vinda de uma língua declinada para o nosso português não declinado, seria algo como “Se não posso vencer os céus, moverei o Inferno.” uma outra forma de tradução seria “Se não posso mover os deuses de cima, moverei o Acheronte”. Acheronte aqui é livremente entendido como um inferno mitológico.

Uma enorme variedade de interpretações é facilmente encontrada pela rede, e a que mais me agrada é relacionada ao pessimismo e sarcasmo do Freud, aquele pessimismo que tocou mais uma ferida narcísica da humanidade: Não somos donos de nós mesmo, não somos donos de nossos destinos. Não podemos agradar todos.

Que atire a primeira pedra quem nunca tenha se frustrado. Existe algo de trágico nessa frase do Virgílio. Freud usou-a de forma brilhante, colocando muitos intelectuais em dificuldade, na dura tarefa de extrair o verdadeiro significado que ele idealizou. Se não podemos voar para o encontro de nossos sonhos, temos que aceitar uma forma manca de caminhar. A conquista de muitos sonhos requer asas, mas tropeçamos no primeiro passo. Aquela sensação vazia que Fernando pessoa trouxe no belo poema Tabacaria “Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama; Mas acordamos e ele é opaco, Levantamo-nos e ele é alheio…” Ah que coisa triste. Uma beleza triste.

O origami

Dias atrás fiz um barquinho de papel, uma forma de origami bem fácil de fazer, aprendi quando tinha uns oito anos de idade. Eu já sabia que eu jamais teria a dádiva de construir sonhos concretos com aquela que se transformou o meu platonismo mais verdadeiro. Então depois do almoço, eu dobrei uma folha de sulfite A4, da melhor forma que pude, construí um barquinho e escrevi “Navegue em meus sonhos comigo” ou algo assim. Foi um erro, e desejo consertar, reparar essa forma de engano que na verdade era uma pequena esperança.

Bacharelo-me

Na carteira de trabalho do meu pai, a profissão descrita era Lavrador. Sou filho de um lavrador do interior de Minas Gerais. O velhinho morreu com 70 anos de idade, mas orgulhoso do filho, o primeiro filho homem que se formou em engenharia. Engenharia Elétrica (a maior de todas as engenharias). É impossível não me lembrar do Brás Cubas, que embora tenha estudado muito mediocremente as árduas disciplinas da universidade, acabou conquistando o grau de Bacharel. Foi com essa sensibilidade que eu também me bacharelei. No dia que a universidade me atestou em pergaminho uma ciência que estava longe te trazer arraigada no cérebro, eu enchi meu pai de orgulho e isso basta. O que eu quero dizer com toda essa digressão é que eu aprendi a semear o solo com o bom agricultor que o meu pai era. Plantávamos juntos, no mesmo solo, as mesmas sementes e da mesma forma. As sementes que ele plantava cresciam mais formosas que as minhas. Muitas plantinhas que eu cultivei morreram precocemente. E assim continua acontecendo com minhas ilusões, minhas esperanças. O que eu fiz de errado? Não sei, mas se não posso conquistar o coração de Roxana, Acheronta Movebo. E assim Freud me ensinou a lidar com as frustrações. O inferno aqui não possui um significado negativo. É uma lamentação trágica, sem dúvidas, mas o inferno é só o processo de lidar com a frustração. Dói, mas passa. Feliz por instantes de alegrias que foram eternizados no espaço tempo do meu coração. Veremos em breve.

O origami, parte II.

No dia que eu fiz o barquinho com a frase que escrevi à caneta “ Navegue nos meus sonhos”, eu fotografei e enviei para a minha galáxia particular, Ela respondeu dizendo que eu era criativo. Meu origami ficou no meu bolso, que deixei no carro quando voltei pra casa. Hoje a frase escrita seria algo como navegue nos seus próprios sonhos. Isso é uma coisa que não poderei modificar. Não posso mover os céus, então Acheronta movebo. No inferno do Virgilio, as almas são trasportadas através de um barco. No meu inferno o meu barquinho de papel me leva aos céus.

Bauman

(Se o amor é líquido, é por este líquido que meu barquinho navegará)

Numa de nossas conversas, o assunto chegou nos livros do Bauman que eu tinha. Amor Líquido, Modernidade Liquida. Ela disse: “Me empresta” No dia seguinte os deixei no banco do carro. Uma longa espera de uns três meses foi necessária para que os livros fossem entregues.

Amor in Amorim

Imprevistos acontecem. Amorim é o nome do Papitoo. Roxana acompanha o pai nas apresentações, Me perdoe Sr, Amorim, admiro profundamente sua arte de interpretar o Raulzito, mas sua filha é a minha atração favorita. Eu cheguei atrasado no show do dia 12 de dezembro de 2024. Consegui pegar pelo menos meia duzia de músicas. Terminada a apresentação, eu fiquei olhando aquele misto de Mestre Mago sentado com uma tranquilidade zen e comendo frango. Ele me viu e acenou. Fui até a mesa dele, enquanto Roxana terminava de guardas as coisas. Conversamos um pouco e do chapéu que emprestei do Fernando Pessoa, Amorim encantadamente me comparou a um Jesuíta, e parece que ele gostou da ideia pois a todos que tinha oportunidade comentava: veja aí um Jesuíta, e ria. Com a filha não foi diferente. Quando Roxana apareceu e me cumprimentou, tão logo, o Papitoo apontou para o meu chapéu e novamente, veio a comparação com o Jesuíta. Foi divertido.

Assim que pude, mostrei para Roxana um pacote preto. Ela olhou e indagou: “Ah! Os liiiiiivrooos!

Sim eram os livros. Amorim perguntou se era presente, Roxana, sem saber o que responder disse qualquer coisa que eu não me recordo. Ela olhou o pacote e não sei se percebeu que o Acheronte Movebo estava entre eles. Quando eu parei o carro no estacionamento do Jump Bar, catei o barquinho de papel e meti no meio de um dos livros. Sabe-se lá Deus o que me levou a introduzir o origami. Desejo que ela nunca me devolva os livros, pois eles são um pequeno laço que nos une, e a devolução quebrará a magia. Também não são dados pelo mesmo motivo. É um presente não dado, e ao mesmo tempo, um empréstimo sem devolução. Os apaixonados criam teorias confusas quando desejam materializar o amor. Não ria da inocência dos meus sentimentos.

Funk

Dizia a canção do meu amigo Fabio Maçola, Cerveja tem fim, dinheiro tem fim, o dia amanhece sim… restou um pequeno grupo de pessoas na casa, Roxana não se conteve e foi para a pista. O mundo vai acabar, e ela só quer dançar, dançar, dançar. Era uma noite de quinta feira. A música tocada no momento era o deplorável funk carioca. Para evitar que a letra obscena o deixasse ruborizada, a pequena Rox se distraia com seus passinhos.

Pneus de carro cantam.

Acabou a festa, nos despedimos e fomos embora. Errei o caminho, pouca coisa, quase nada. Acendeu a luz de reserva e parei no posto do Caxambu para meter no tanque cinquenta conto de álcool, daquele combustível de procedência duvidosa. Espero por mais momentos como este. Obrigado por me fazer entender que o coração de um bobo rabugento que sou ainda é suscetível ao amor.