Para você ler depois

A mulher, desencantada com o marido, achou melhor ir para o quarto. Fez um bilhete, mas também achou melhor não entregar. Bem- humorada e para sobreviver, pensou:

_ Quando ele morrer, ponho no bolso do paletó dele para ele ler depois. Colocou o bilhete na caixa dos seus guardados, pegou a caixa de costura, o bordado e foi para o alpendre. Passados uns meses, não é que a mulher morreu? Morreu. Foi o marido tirar tudo o que era da mulher, como é de costume fazer, após uns dias do falecimento.

Colocou vestidos numa caixa; sapatos deu à vizinha, que o ajudava. Separou carinhosamente livros, fez pacotes colocando os nomes dos destinatários, pessoas queridas da falecida. Pegou a caixa dos guardados, olhou fotos, releu cartas amareladas do tempo, que ele lhe enviara durante o noivado; chorou, secou as lágrimas. Até que chegou no tal bilhete e leu lá:

Para você ler depois

Hoje saí de perto para você parar. Você é que me mandou parar. Mas eu saí porque sabia que ia começar.

Agora, que estou longe, pense:

Será que você gosta mais do álcool do que:

dos seus irmãos,

dos seus sobrinhos,

de mim,

de nossos familiares,

de nossos amigos?

Por que você não me diz que vai se controlar, se formos? Bastava você me dizer isto, e eu saberia que você iria cumprir, porque você sempre cumpre o que promete, e isso você nunca me promete. Se você me dissesse que eu poderia ficar tranqüila, que você não iria passar das medidas... é só isso que lhe peço, mas você nunca me diz o que espero ouvir. Por que você exagera, se vamos? Minha única certeza é a de que tenho muito medo do álcool e sei que não podemos com ele; ele está sempre no meio de nós. Por isso deixo tudo o que mais gosto nessa vida: a dança, os bailes, os amigos, os parentes, as piscinas. Só esse medo me faz afastar dessas coisas e dessas pessoas. Você pode fazer alguma coisa? A propósito, hoje, depois que eu sair, o que você vai fazer na minha ausência?

Beijos. Júlia

O homem nunca soubera da intenção bem-humorada da mulher. E ela não estava lá para ver o desfecho daquele dia. Pois naquele dia vieram seus irmãos cumprimentá-lo, que não chegaram a tempo do exterior. Ele os abraçou e chorou muito. Conversaram longamente naquele e em muitos outros dias que se seguiram sem necessidade ou mesmo vontade de colocar copos na mesa e bebida na boca.

Assim foi até o resto de seus dias: uma aversão natural pelo álcool, um gosto pelo abraço demorado, pelas conversas sem pressa até o anoitecer, com os irmãos, atravessadas de saudades: “ a minha Júlia gostava disso... a Júlia fazia assim... quando a gente se casou...”

Neusa Storti Guerra Jacintho
Enviado por Neusa Storti Guerra Jacintho em 14/12/2008
Reeditado em 29/11/2009
Código do texto: T1334835
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