Ninguém Chora Quando as Putas Morrem

Eu nasci de um erro e fui criada para dar errado. Eu tinha 19 anos e um futuro nada promissor que não me esperava. Me chamava Jasmim, embora quase nunca escutasse as pessoas me chamando assim em meus últimos anos de vida. Imaginem só, uma puta dando o nome de uma flor para sua filha, uma futura puta. Mudei meu nome para Paola pelas noites de Amoinho, muito mais condizente com minha natureza suja.

Minha mãe sempre deixou bem claro o quanto eu atrapalhei a vida dela durante os nove meses de gestação e pelo resto da vida dela em que meu parto deixou as marcas da maternidade em seu corpo de formas anteriormente perfeitas. Chamava-se Maíra, mas isso eu só descobri quando aprendi a ler e li minha certidão de nascimento. Todos a chamavam de Miranda, inclusive eu mesma, ela me proibia de chamá-la de mãe. Não tinha idade pra ser mãe, dizia. Era puta. Puta das melhores antes dos 20 anos, mas engravidou. Depois disso viveu de poucos clientes, não tão ricos, não tão jovens, não tão bonitos, não tão limpos, não tão agradáveis. Tinha vezes que iam pra casa onde morávamos e eu precisava me trancar no banheiro até a hora em que eles iam embora. Eu devo ter me assustado na primeira vez que isso aconteceu, mas pra ser sincera, foram tantas que eu nem consigo me lembrar de quando tudo começou. Mas me lembro com uma nitidez que até assusta a primeira noite em que Francisco pisou naquela casa. Como o de costume, quando ouvia a chave girando a fechadura, eu me escondia no banheiro e só saía de lá quando me certificada de que Miranda estava sozinha ou quando quem a acompanhasse tivesse partido. Mas não naquela noite. Francisco foi em direção ao banheiro antes de pegar o rumo da cama. Estava trancado, claro, mas antes que minha mãe tentasse impedir, o brutamonte já havia derrubado a porta. Viu-me escondida, assustada, frágil. Mandou-me sair pra ele poder tirar a água do joelho. Eu continuei firme até que Miranda entrou e me arrastou pelo braço. Eu nunca tinha visto o rosto de nenhum dos homens da minha mãe até aquela noite. Passei a noite na calçada de casa e fui acordada por uma senhora com o olhar terno e cara de bondade que eu nunca tinha visto em ninguém. Morava na rua de trás e era casada com um senhor com o mesmo semblante terno que ela tinha. Dona Margarida e Seu Alfredo, os responsáveis pelos únicos momentos bons que eu tive na vida.

Eu tinha sete anos e nunca frequentei a escola. Ficava o dia todo trancada em casa, tentando ver uma TV que vivia chuviscando. Depois daquele dia que Dona Margarida me encontrou, passei as tardes na casa dela aprendendo a ler, escrever e bordar. Seu Alfredo era dono da banca de revistas do bairro e sempre trazia os jornais que não vendia no dia anterior e algumas revistas que saíram de circulação. No começo, eu tinha medo e vergonha de ir, mas depois fui me acostumando e era tão prazeroso estar naquela casa antiquada com vasos floridos, fotografias em cerâmica pendurados nas paredes como se fossem quadros. Era como se eu fosse outra pessoa, como se eu fosse uma neta deles cujos pais tinham morrido. Eu esquecia as noites anteriores, esquecia Miranda e esquecia Francisco, que tinha se tornado figura recorrente quase todos os dias em minha casa.

O meu aniversário de 11 anos se aproximava e D. Margarida estava decidida a fazer uma festinha para comemorar. Eu nunca tinha estado em uma festa, nem sabia para que servia, só sabia da existência por ter lido a respeito em alguns livros da estante de Seu Alfredo. Via na televisão algumas coisas, mas a imagem era sempre ruim demais para saber definir alguma coisa. E mesmo, me parecia coisa para pessoas que tinham amigos e eu, ao contrário disso, só conhecia e era querida por eles dois e mais ninguém. Mas Dona Margarida era persistente. Comprou todos os ingredientes necessários para fazer o bolo, os docinhos, comprou balões e algumas fitas pra decoração e tratou de convidar todos os seus amigos e parentes como se a festa fosse dela e intimou a todos que trouxessem filhos e netos para iluminarem a festa.

Faltavam três dias para meu aniversário quando fui à casa de D. Margarida e Seu Alberto e, pela primeira vez, encontrei tudo fechado e nenhum dos dois atendeu à porta. Esperei até ficar escuro e voltei pra casa quase no horário habitual que sempre voltava quando ficava conversando com D. Margarida. No outro dia, fui mais cedo e ainda peguei seu Aberto saindo para pegar o leite na porta. Ele não tinha mais o semblante terno e harmonioso de bom velhinho. Seus olhos estavam vermelhos e com bolsas de melancolia. Estava triste, arrasado. Eu perguntei se ele estava bem e ele respondeu sem me olhar:

- Ela se foi, menina. Ela se foi na madrugada de ontem.

Ele entrou sem me convidar e eu também não esperava que o fizesse. Sentei no batente da porta e chorei não por não ter mais minha festa de aniversário, nem por não ter com quem passar as tardes. Chorei com pena do mundo inteiro que perdeu a pessoa mais doce que existia e chorei por mim, por não ter me despedido dela.

A essa altura, Miranda não levava mais seus clientes para a casa onde morávamos, mas pior que isso, Francisco havia se mudado para lá. Ela levava os clientes para qualquer outro lugar e não durava além da meia noite, horário que ela sempre voltava e dava o dinheiro para o namorado.

Eu já não tinha onde ficar o dia todo depois da morte de D. Margarida, então ficava o dia todo em casa. Francisco não trabalhava há um tempo e minha mãe começou a sair mais cedo para tentar, talvez, arranjar mais de um ou dois clientes por noite. Não demorou muito até eu notar que ele me olhava quando eu tomava banho e demorou muito menos entre eu notar e vê-lo entrando debaixo do chuveiro comigo. Eu continuei de costas, tremendo e com os olhos arregalados que ele não podia ver, olhando para os azulejos azuis do banheiro como se minha vida dependesse de não parar de olhá-los. Senti suas mãos passando em meus mamilos cujos peitos ainda não haviam florescido.

- Ainda é lisinha. - disse enquanto me tocava - Deve ser bem apertada. - e dizendo isso, forçou seus dedos, mas não o suficiente para penetrar. Ele me puxou pelo cabelo e se abaixou pra falar ao meu ouvido. - Eu vou te esperar, sua putinha. E se contar pra puta velha da tua mãe, eu mato as duas. Promessa.

Me deixou no banheiro com as minhas lágrimas e depois disso, passei a evitar tomar banho depois que Miranda saía, mas isso não empatou Francisco de me tocar por muito tempo. Ele passou a fazer isso todos os dias assim que Miranda saía e ficava assim por horas, até um pouco antes dela voltar. No começo eu chorava, mas depois de um tempo, eu passei apenas a ficar de olhos fechados e esperava acabar.

Demoraram três anos pra que Miranda não conseguisse o terceiro cliente da noite e voltar mais cedo pra casa. Nos pegou na cama. Eu tinha 14 anos, uma mãe que nunca me amou, um padrasto que me estuprava, sem amigos, sem família, sem D. Margarida, eu não tinha razão nenhuma pra viver. Miranda gritou todos os insultos que sua vida devassa a ensinou e me expulsou de casa sob acusação de eu estar tentando seduzir Francisco. Nunca vou me esquecer do jeito como ele ria enquanto vestia a bermuda. Os olhos de Miranda tinham brasa, faiscavam, cuspiam ódio. Aquela visão me aterrorizou muitas noites depois, antes de pegar no sono. Depois eu acabei descobrindo que o apelido de Miranda era esse: Miranda Olhos de Brasa. Pouco mais soube sobre ela depois que fui expulsa de casa. Soube quatro anos mais tarde que ela havia sido assassinada por uma mulher enfurecida de ciúme de um de seus clientes porcos. Não deixou ninguém que a amasse, nem que lamentasse a morte dela. De Francisco, soube apenas que tinha encontrado uma moça mais nova e bonita, puta também, para explorar. Não havia quem chorasse pela morte de Miranda, nem ela merecia.

Conheci João na minha segunda noite de sem-teto. Sem pra onde ir, eu acabei por aí, caminhando, sentando em alguma praça, caminhando mais, pegando sombra debaixo de uma mangueira de onde eu tirava algumas mangas pra não morrer de fome. João tinha 16 anos e cresceu na rua, não tinha família, não teve estudo, não sabia ler nem escrever, mas algo nele, algo bem escondido debaixo das unhas sujas, cabelo e pele mal cuidada, algo debaixo daquela pedra bruta, havia escondido um diamante. Ele me levou pro trapiche onde morava com alguns outros meninos de rua e me apresentou como "ela sabe ler". Passei um bom tempo lá e me senti como uma Wendy, no meio dos garotos perdidos. Os garotos viviam de limpar e vigiar carros, "somos muito dignos, aqui é proibido roubar", Pedro me disse assim que cheguei ao trapiche.

Não tardou pra que eu encontrasse Madalena, senhora que deveria ter quase a mesma idade de Dona Margarida, mas sem a feição de bondade. Ao contrário, seu rosto sempre com muita maquiagem, batom vermelho sangue, olhos verdes bastante pintados e cabelo bem preto, parecia sempre arrumada pra sair. Ela havia perdido sua cachorrinha raquítica que, ao acaso, encontrei enquanto voltava da praia com João. Quando ela viu a cachorra em meus braços, tentou me bater com o leque, achando que eu a tinha roubado. João me defendeu e explicou que eu a tinha encontrado.

- Então desculpa menina. Mas me devolve minha Charlotinha, quase morro sem ela comigo.

A devolvi e rumei para o trapiche, mas Madalena gritou para que eu voltasse.

- Tu tens quantos anos, menina? Como é que tu te chamas?

- Vou fazer 15, meu nome é Jasmim. - respondi sem jeito.

- És virgem?

- S-sou. - menti.

- Tens pai? Mãe? Onde tu moras?

- Vamos Jasmim, essa velha deve tá ficando doida. - disse João tentando me puxar pelo braço. O soltei e continuei olhando para Madalena.

- Não tenho ninguém, senhora. Não sou ninguém.

- Pois agora tu és Paola.

Não entendi o que aquilo queria dizer, mas João já sabia que eu não voltaria para o trapiche. Madalena me puxou e me levou para o carro que a estava aguardando. Eu estava suja, vestindo um dos dois vestidos que tinha trazido comigo e descalça. Ela me levou à costureira e me deu alguns vestidos de presente. Depois me levou pra sua casa e eu, adorando, achava que ela fosse me adotar ou me fazer ser a babá de alguma neta dela ou algo do tipo.

Moravam mais oito mulheres na casa de Madalena. Quando a noite chegou, descobri que não era uma casa qualquer, Madalena era dona de um bordel. E eu era o prêmio da noite. Madalena havia se encarregado de conseguir uma putinha virgem para um senador, cliente assíduo do lugar. Soube disso momentos antes, enquanto Jussara, uma puta experiente, quase em fim de carreira, me ajudava a pentear o cabelo. Corri para o quarto de Madalena e tentei explicar a ela que havia mentido mais cedo, que não era virgem coisa alguma, que tinha sido abusada quase todos os dias nos últimos três anos e ela não acreditou. Achou que eu estivesse tentando me livrar do programa com o senador, que eu quisesse fugir.

- Pois tu, mesmo não sendo mais virgem, vai passar a noite com o senador. Mesmo que pra enganá-lo, tenha de enchê-lo com todo o conhaque do nosso estoque.

Voltei para o quarto aos prantos, não por medo ou receio da noite que me esperava com o senador, eu já aguentei o que julgava ser pior com Francisco. Mas chorei por ter me tornado minha mãe e o meu maior medo se tornou realidade.

Madalena fez o combinado, mandou descer quase todo o estoque de conhaque para o senador e meu trabalho era fazê-lo beber cada vez mais. A quantia que ele pagou por mim valia a pena cada gota de álcool, meus vestidos novos e minha suposta virgindade.

Perdi a virgindade pelo menos umas três vezes nesses golpes de Madalena. Aquela velha deve ter lucrado bastante comigo.

- Tu tens beleza de virgem, Paola. Deve ser teu cabelo cor de palha e essas tuas pintinhas na pele. Tens cara de virgem, dava pra ser puta não. Vou te usar como A Virgem até onde der. Tá muito nova ainda pra descer com as outras, mal peito tu tens. - disse Madalena enquanto observava eu me preparando pra atender meu segundo cliente.

Depois o terceiro, Madalena viu que talvez ficasse perigoso me repetir como virgem pra vários figurões. Pra não ser desmascarada, achou melhor me colocar no bar até eu ter idade e corpo pra ir pra cama com os clientes. João ia me ver de vez em quando, antes de anoitecer. Ele me contava as coisas dele, como estavam no trapiche, que sentiam minha falta. Com o tempo eu percebi que ele vinha pra me buscar e com o tempo, ele foi percebendo que eu já não queria ir embora. Eu não contei a ele que fiz programas, disse que ajudava no barr algumas noites, mas que de resto, estava lá por pura bondade de Madalena.

- Não suportaria se te visse puta. - disse em uma dessas tardes e virou o rosto pra esconder que seus olhos estavam marejados.

- Por quê?

- Porque pra mim tu és pura. - voltou a me fitar com um olhar que me implorava algo que eu não soube o que era. - E porque eu te amo.

- E se eu fosse? Me amava ainda?

- Se tu fosses, eu me matava.

- Mas se matava por quê?

- Já disse, Jasmim. Tu és pura e pronto. Não quero te ver como essas vadias com cara pintada e tinta no cabelo. Tua beleza é tua, tu não compraste isso com dinheiro de foda.

Isso me fez lembrar as palavras de Madalena. "Beleza de virgem". E eu estava lá, mentindo pro João como menti pro senador, pro empresário e pro desembargador. Perguntei-me se eu era tão falsa quanto minha "beleza de virgem", se enganava tão bem assim.

- Acho melhor eu entrar agora, devem estar precisando de mim pra arrumar o salão. - me levantei e segui pro portão.

- Espera me fala...

- Falar o quê?

- Eu te disse que te amo.

- Ahn, obrigada... - não sabia o que responder, até porque não sabia o que era amor, nunca ninguém me disse isso, nem Dona Margarida, a pessoa que mais tinha feito por mim.

- Mas e tu?

- Pra ti, eu faria de graça.

- Esquece, vou-me embora.

Ele foi e não voltou durante um bom tempo. E se veio, eu não o estava esperando. Foi na mesma época em que Paulo começou a frequentar a casa. E em tantas noites de boemia, Paulo preferia ficar no bar enquanto seus amigos subiam com algumas das "meninas" - era assim que as chamavam -. Sempre falava comigo sobre o clima ou sobre política, como se eu entendesse alguma coisa. Eu sorria e concordava sempre, como Madalena já havia me ensinado.

- Tu és virgem? - me perguntou uma noite.

- Não.

- E por que tu não sobes como as outras?

- Não tenho idade nem corpo bom pra isso.

- E tu não queres, né?

- Não faço questão.

- Teu nome é Paola mesmo?

- É.

- Mas tu não tens cara de Paola.

- Tenho cara de quê?

- Tem cara de quem tem nome de flor. Violeta? Margarida? Rosa? Marissol?

- Que besteira. - sorri e me afastei. Ele se mudou de cadeira pra uma mais perto de onde eu estava.

- Quero uma noite contigo.

- Não estou no cardápio.

- Mas eu quero. Pago o que for, mesmo não sendo virgem. - olhei pra ele pela primeira vez, ele tinha brasa nos olhos, mas não como a brasa nos olhos de Miranda. Sua brasa me aquecia, mas não me queimava. Era só uma faísca viva que vivia de desejo.

- Isso é assunto pra tratar com Madalena.

Continuei no bar e com os afazeres da noite, perdi Paulo de vista e depois de arrumar tudo, no final do expediente, Madalena me chamou no canto.

- Não sei o que tu fizeste, menina, mas Paulo te quer mais que tudo. Tá te esperando no quarto 2.

- Achei que fosse muito nova, Dona Madalena.

- Menina, é o que eu acho. Agora se tem quem goste, eu que não vou negar dinheiro. Aliás, aqui tá tua parte.

Tirou um bolo de dinheiro que estava enrolado entre os peitos e me deu duas notas. Subi e fui até o quarto 2. Bati à porta e Paulo a abriu com o sorriso radiante. Dentes tão brancos e alinhados. Fez-me apagar da memória o que João disse, que me amava e se mataria se soubesse que eu era puta. Esqueci de todo o resto, entrei no quarto e fui pra cama. Ele me acompanhou, tirou meu vestido devagar, passou a mão por cada parte do meu corpo, me fez relaxar e pela primeira vez, eu não me sentia suja enquanto um homem me acariciava. Fechei os olhos e senti seus lábios nos meus e desabotoei sua camisa. Quando acordei, ele não estava mais no quarto. Devo ter dormido em seus braços logo depois que terminamos.

Eu o esperei a noite toda, mas ele não apareceu. Para Madalena, aquela foi a noite em que começaram os negócios para mim. Para mim, aquela foi a noite que eu descobri o que era esse tal de amor que João havia falado. Depois de duas noites me oferecendo sem eu ter conhecimento, Madalena me mandou servir um cliente e ele me forçou a sentar em seu colo com uma força quase super-humana. Olhei para ela e ela consentiu. Eu soube então que minha vida de Miranda tinha começado de vez.

Foram noites sem conta que eu esperei que Paulo aparecesse outra vez. Foram noites sem conta que eu subi para os quartos com estranhos querendo do fundo da alma que todos fossem ele. E a esperança que morria em todo amanhecer sem Paulo, era a mesma esperança que renascia das cinzas todo anoitecer esperando-o entrar.

Era meu aniversário de 19 anos quando vi aquele sorriso de dentes tão brancos e alinhados outra vez. Eu estava sentada à mesa com um Carlos Albani, um cliente que pagava tão bem para Madalena quanto para mim ou qualquer outra menina que ele escolhesse na noite. Levantei sem perceber o que fazia e fui em direção de Paulo. Estava diferente. Seu cabelo estava mais arrumado e usava barba que lhe envelhecia uns seis anos.

- Tu estás incrível. - disse a me ver. - Não se parece em nada com a garota que eu conheci.

- Tu estás mudado também.

- Mas não como tu. Esse batom vermelho, essa máscara de maquiagem que tu estás usando. Tens cara de puta.

- É o que sou.

- Tu eras moça do bar.

- Mas assim como tu, outros compraram meu sexo.

- Não era o que eu queria pra ti.

- E o que tu querias então? Tu sumiste. Nem bilhete me deixou.

- E precisava? Tu eras a moça sem gosto e sem graça do bar. Sem essa parafernália toda de vadia. Vim quando achei que tu já tivesses na idade e te encontro passada.

- Só que tu se esqueceste de me avisar que vinha, então não me culpe por não te esperar. - voltei pra mesa de Carlos e só vi Paulo subindo as escadas com Valéria, uma das meninas que sempre subiam com seus amigos. Por maior que fosse a raiva que eu sentia por Paulo naquela hora, o que eu mais queria na vida é que fosse eu no lugar dela.

Dormi com Carlos Albani e sonhei com João naquela noite. Sonhei que ia até o trapiche e o encontrava enforcado. Fui tomada de um medo tão grande que no dia seguinte, a primeira coisa que fiz foi tirar os vestígios de maquiagem do rosto e procurar por João sem minha cara de puta com medo de que ele cumprisse a promessa que fez anos atrás. Fui ao trapiche e lá moravam outros garotos mais novos que eu nunca tinha visto. Perguntei a eles se sabiam de João e eles disseram que não o conheciam. Voltei para a casa de Madalena sem esperanças de reencontrá-lo. "Perdi João por preferir ficar pra ser puta e perdi Paulo por ter me virado puta", pensei. Sentei no degrau da casa de Madalena do mesmo jeito que sentei no degrau da casa de D. Margarida e chorei como aquela garotinha de 11 anos que eu nem lembrava ter sido.

- Quem é ele? - disse um homem em pé me olhando de cima. O fitei e ele era bonito e bem vestido e me lembrava de alguém.

- Ele quem?

- Por mim que tu deves estar chorando.

- João! - levantei tão depressa que quase caí. Pulei em seus braços e o abracei tão forte quanto pude. - É um milagre você vir logo hoje.

- Venho todo dia há quase um mês, tu que nunca estás aqui fora. - falou enquanto me soltava.

- Eu fui te procurar hoje. Lá no trapiche.

- Não moro lá há muito tempo. Estava fora há quatro anos, sou comandante de um navio.

- Eu não sabia. Por que não veio me chamar? Por que esperou até me ver aqui fora?

- Tive medo de te chamar e te encontrar como não queria.

- Tu me amas ainda?

- Mais que antes, porque na saudade tu és ainda mais encantadora.

- Só na tua saudade mesmo.

João me levou pra tomar sorvete e ao cinema no dia seguinte, e ao parque de diversões no outro. Não me perguntou se eu tinha me tornado puta e eu fazia questão de me manter sempre com o vestido mais simples e a maquiagem mais leve possível com a ilusão de que o enganava. Em algum momento eu percebi que ele não perguntava por já saber a resposta, mas não querer ouví-la de mim ou me ver mentir.

Ele não apareceu no quarto dia. Já eram quase seis da tarde e eu precisava subir e me arrumar para esperar os clientes e assim o fiz.

Eu estava sentada no colo de um político que eu não sabia o nome, embora já tivesse ido pra cama com ele várias vezes, quando João chegou. Eu estava rindo de alguma piada sem graça quando o vi deixar cair o buquê de jasmins brancas no chão. Ele saiu enfurecido e eu fui atrás dele. Ele parou no jardim e me encarou.

- Puta.

- Me desculpa, eu...

- PUTA!

- Por favor, para.

- Para? Tu me pedes pra parar? Eu passei todos esses anos tentando ser alguém na vida pra te merecer. Te ajudei quando mais precisava, te amei todos os dias da minha vida desde que te encontrei, te coloquei num altar e descubro que tu és de pau oco. - seus olhos me queimavam.

- Me perd...

- Tu sabes o motivo pelo qual eu disse que me mataria se soubesse que você era vadia?

- Não e nem inventa de fazer is..

- É porque eu te amo, sua vagabunda. - se aproximou e me beijou. Beijo salgado com o gosto das minhas lágrimas. - É porque eu não vou saber viver sabendo que te matei.

Eu ouvi um barulho de tiro e senti algo escorrer por entre meus seios. Tudo escureceu. Eu senti meu corpo caindo no chão, mas parecia que a queda não tinha fim. Ouvi outro barulho e soube que estávamos mortos. Ambos. Eu estraguei o único amor que me deram e então eu soube que, com João morto, ninguém choraria pela minha morte. E nem eu o merecia.

A B Queiroz
Enviado por A B Queiroz em 05/10/2012
Código do texto: T3917557
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.