Ladrão de sepulturas

Amedrontado, carregando na mão direita um molho de velhas chaves e já avistando a modesta delegacia de polícia, diminuiu o passo para também se desviar das pequenas poças com água da forte chuva que caíra durante toda a noite e prolongou-se até à madrugada. E, só acalmou um pouco, quando chegou à porta e entrevira o delegado escondido atrás de pesados óculos de grau, debruçado sobre cotiada escrivaninha de cerejeira desafiando, meio sonolento, uma pequena e amassada revista de palavras cruzadas, sendo espertado pela entrada brusca do inesperado visitante, que se acomodou numa das cadeiras à sua frente.

– Seu delegado – disse o assustado coveiro ainda tenso e respirando com dificuldade. Aconteceu outra vez... Mais uma sepultura amanheceu hoje violada!

E antes que o delegado esboçasse alguma reação, completou: – E pelas características do ato foi o mesmo gatuno que agiu à noite enquanto chovia. Cavou uma passagem pequena e, como das outras vezes, não deixou nenhuma pista, nenhuma pegada, é muito estranho... – O senhor tem que ir lá!

– Acalme-se, homem. – pediu o delegado guardando o passatempo e erguendo o olhar para o decorativo relógio com a insígnia do seu clube de futebol preferido, pendurado na parede, marcando oito horas de uma manhã nublada e indolente. – Tomemos um café e vamos até o cemitério, porque já está passando da hora de colocar esse ladrão de sepulturas no xadrez! – Emendou. – E custe o que custar! – Irou-se.

Calmamente e à margem esquerda do caminho, partiram em direção ao campo-santo, que distava não mais que um quilômetro do perímetro urbano e tinha as laterais e o fundo orlados pelos cerrados de uma grande fazenda de criação de gado. O delegado, alisando os cabelos grisalhos e passando dos cinqüenta, animara-se com esse acontecimento que se tornou notícia e era o assunto dominante nas rodas de bares, feiras, esquinas... Visto que pouco acontecia na vida simples daquela remansosa cidadezinha do interior.

No local do delito, acende um cigarro – seu único vício (de teimosia), pois lhe fora proibido junto com a ingestão de bebidas alcoólicas – e analisa, pensativo, as circunstâncias e hipóteses na cena do crime. Acende outro cigarro, enquanto amassa os restos do anterior com o tacão da botina preta. E coçando a cabeça, ronda entre as catacumbas a procura de vestígios, de um erro, uma falha... Mas nada ele encontra... Finalmente, conclui que a chuva lavou e levou qualquer sinal que tenha deixado o biltre.

– E então, seu delegado? – inquiriu o confuso coveiro. – Encontrou alguma novidade?

– Não... Nada... Só o mesmo buraco, pelo qual uma pessoa dificilmente transpõe... Muito esperto... – Responde intrigado. – Nas outras vezes, interroguei os familiais e parentes que têm os seus aqui sepultados, mas não se lembram se os enterraram com pertences, jóias ou ouro...

Despediu-se pedindo para o coveiro consertar a rompida cova e voltou à velha poltrona do trabalho. Agora, porém, arquitetava uma ação para apanhar esse larápio... Não hoje, pois o sol começava a arder e dourar o horizonte.

Dois dias depois o tempo torna a ficar num cinza cerrado, luzindo de vez em quando um relâmpago; e o ar está frio e úmido.

– Coveiro! Coveiro! – grita o delegado à frente de uma casinhola bem próxima ao sepulcrário, se fazendo acompanhar dos seus três subordinados.

– O que houve, seu delegado? – responde o outro interrompendo o seu jantar modesto. – O que traz o senhor aqui, sob essa garoa?

– Tenho um plano... Venha depressa homem! Vamos ficar de tocaia e prender esse ladrão de sepulturas. Porque, de hoje ele não passa! – falou confiante.

Os cinco homens munidos de lanternas, montaram guarda. Os policiais acomodaram-se espreitados por entre as árvores que circundavam a última morada, de forma que pudessem bem observá-la, e o coveiro trancou-se num pequeno quarto de despensa que lá havia. E por duas noites seguidas, frustraram-se todas as expectativas...

Tudo continuava sossegado na terceira noite, quando o relógio da torre da igreja soou doze badaladas, anunciando a meia-noite.

– Será que ele vem hoje? – questionava-se o persistente delegado, pois a única comunicação com os demais, seria feita através de sinais com as lanternas. E com certeza, todos compartiam o mesmo pensamento sob a fraca neblina que momentaneamente entremeara-se à garoa.

– Ele está com sorte. – pensou, quando de repente surgiram tímidos sinais de lanterna à entrada do cemitério e todos se deslocam com rapidez e máxima prudência. Era o coveiro dando o alerta.

– Viu alguém? – perguntou-lhe o delegado já de arma em punho.

– Esse, é o problema. Não vi ninguém, nenhum vulto... Mas ouvi um barulho esquisito próximo ao jazigo de um fazendeiro que foi enterrado ali, não tem um mês. – completou trêmulo, apontando para um dos cantos do cemitério.

– Não há dúvida, só pode ser ele! – anima-se o delegado. – Seus dias de crimes estão terminados. – sentencia. – Vamos acuá-lo. – Tenham muito cuidado e só atirem ao meu comando ou em real perigo. – arrematou eufórico.

Assim, caminharam cautelosos e em forma de arco, gesticulando para que o coveiro ficasse para trás.

Um ruído incessante fazia-se ouvir cada vez mais perto, e só era quebrado pelo clarão dos relâmpagos e pelos trovões. E quanto mais se aproximavam, mais os ânimos se acirravam, agitando-lhes a adrenalina.

Finalmente chegam ao local de onde vinham os rumores e vêem punhados da terra molhada serem jogados pelo lado de uma sepultura. O delegado passou a mão no rosto, retirando um pouco da água que escorria e sinalizou aos demais para que ficassem atentos e engatilhassem suas armas. A hora chegara.

E quando todos, ao mesmo tempo, focaram as lanternas para dar voz de prisão ao ladrão de sepulturas, um estrondoso raio fulgurou no espaço e todos, atônitos, desataram numa enorme e estridente gargalhada.

O ladrão de sepulturas não passava de um tatupeba que, tranqüilamente escavava, escavava...

Reginaldo Costa de Albuquerque
Enviado por Reginaldo Costa de Albuquerque em 19/03/2007
Reeditado em 04/04/2010
Código do texto: T418089