Vai um BOLÃOZINHO?

Ao ir à Lotérica pagar as contas, rotineiramente a atendente com a visão encoberta pelo vidro escuro, oferecia um “bolãozinho” ( como dizia ela ) para ele, como costume fazia com todos que pelo caixa passavam. Aquilo gerava certa revolta em Quinzim; pois pensava que num submundo como aquele, viver fechado atrás dos vidros, oferecendo para as pessoas aquilo que não pediram, não cheirava nada bem.

Entendia que ninguém tem que induzir ninguém a comprar nada e quando alguém quiser algum produto ou mercadoria, basta pedir o que quer e é obrigação de quem está com as portas abertas servir o cliente e fim de papo. O homem, além da veneta de ser independente, tinha lá suas paranoias e sabia bem o queria e para quem o fazia.

Estava fazendo um “carreto”, o meio de sobrevivência. Com o valor contado, sem um centavo a mais, pagou as contas; e ao virar para voltar à origem, a atendente pergunta se ia levar um “bolãozinho’, pois alguns mil vinténs o esperava para ser embolsados. De bem com a vida, respondeu: “Sou o único cidadão no mundo inteiro que curte, adora e deleita-se em ser pobre; porém, detesta, odeia a pobreza e trabalho. Quando eu quiser eu peço. Fui!...Um cidadão que estava na fila, disparou a dar risadas e disse: “Desse Quinzim pode-se esperar tudo”.

O que deveras era verdade. A caminho de volta rezingava consigo: “não tenho dinheiro nem para comer, vou ter para tentar ficar rico”. Meneou a cabeça horizontalmente em desaprovação. “Se bem que poderia mudar de ideia e pegar um “bolãozinho”, quem sabe tem um temporal divino me esperando para molhar-me”?

Novamente o “pagador de contas” voltou à Lotérica. Os Oficineiros, não por desconfiança - mesmo porque o cidadão era de extrema confiabilidade e nem os centavos que não o pertencia, jamais punha a mão - mandavam o dinheiro exato do valor do que seria pago; o que facilitava a vida de Quinzim.

Chegou, cumprimentou a todos, aguardou sua vez e passou à atendente as contas e o dinheiro e logicamente, esperou pelos canhotos carimbados. Assim que os recebeu, como de costume, virou e foi saindo. A mesma pergunta bate aos seus ouvidos: “Vai levar um bolãozinho”? De supetão ele respondeu que queria, sim. E antes da atendente perguntar quantos, ele emendou dizendo que poderia quantos ela quisesse e dos mais caros. “Pode ser a minha chance”.

Pegou o chumaço de jogos que ela passou por debaixo do vidro e pernas pra que te quero. Deu linha na pipa e saiu lépido, como cervo em área descampada. Desesperada, a moça soltou a goela lá dentro, pedindo para que a pagasse ou devolvesse os jogos. “Pegue ele, por favor, não pagou. Por favor...por favor, segure-o”. Não havia na fila ou nas imediações da Lotérica que não conhecesse Quinzim, nem dando a mínima para a gritaria da atendente. Um banze de pessoas se formou na rua para saber quem era a pessoa que havia raptado os jogos e não pagado. Consternação geral, exceto das pessoas que viu que era Quinzim o responsável pelo caso; estes calaram-se e puseram-se a observar o desfecho.

O “ladrão” estava do outro lado da rua de braços cruzados. Arregalou os olhos, estacou de pé e ali ficou. A atendente corria por todos os lados. Quinzim quieto, imóvel, até quando um cidadão falou para a moça: “é aquele lá que procuras”? A moça ficou estática e pasma, pois eram amigos e moravam relativamente próximos. “Sim. Não pode ser; não acredito que ele fez isso! Fez-me passar todo esse sufoco e desespero; se estivesse grávida perderia o filho”. Raivosa, caminhou em direção ao folgazão.

Quinzim continuou sereno. Descruzou os braços e enfiou as mãos no bolso da calça rota e desfiada. Já tinha maquinado a defesa e ataque. Esperou ela desabar a fúria em palavras. “Como faz isto, pega os jogos e sai sem pagar? Devolva logo, senão chamo a Polícia, seu irresponsável! Você sabe o valor que está em suas mãos? A falta do dinheiro no caixa quem paga sou eu. Vamos, devolva os jogos. Dinheiro você não tem mesmo. Tenho pressa, a fila está aumentando”.

Quieto e olhando fixo nos olhos e a histeria dela. O público aplaudindo, pois sabia que algo inesperado ia acontecer. Quinzim pensou: “essa é única forma de movimentar esse túmulo de cidade”. De repente gritou:

- Pronto! Só devolvo com a presença da Polícia.

A Atendente caminhou a passos largos em direção à Delegacia. Lá chegou e registrou a queixa. Os policiais indagaram o que houve e quem era o larápio de jogos de “bolãozinho”. A viatura chegou ao local. Quinzim como estava, permaneceu: estático e observando o movimento. Apontou com o dedo em sua direção.

Ao ver que era Quinzim o arruaceiro, os policiais recuaram. A Atendente reiniciou a esteria e gritaria: “Meus jogos! Devolva os jogos, você pegou-os”. Os policiais cochicharam qualquer coisa ao ouvido do andante, que respondeu: “faça o B.O que vou abrir um processo contra ela por calúnia, difamação e exposição ao ridículo em público”.

Após concluído o B.O pelos Policiais, ele pediu os nomes dos policiais e suas respectivas identidades, número da viatura, espalhou os jogos na calçada e saiu resmungando que estava indo falar com o seu Advogado sobre o caso. E sumiu. Por dentro, dava gargalhadas: “Ô povo provinciano e desqualificado! Nem pedi e ela me dá os bolãozinhos e depois reclama. Ficou roendo as unhas de medo. Sou vagabundo e não peço nada para ninguém; mas se me derem, carrego até o mundo nas costas. Só dando risadas, mesmo”!

Segue com mais dois episódios. Antes: Independência, Fome ou Morte e Enlevo Espiritual. Quinzim foi peça rara.

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 18/07/2015
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