O DESQUITE

Algum tempo após a entrada em vigor da Lei do Divórcio em dezembro de 1977, a mulher, aparentando estar por volta dos 40 anos de idade, muito bonita e bem vestida, entrou no escritório visivelmente nervosa e começou a explicar com poucas palavras:

-Quero me desquitar, doutor.

Informei-lhe que apesar de não mais existir o termo jurídico como desquite, o que se fazia na época e como acontece atualmente é a separação judicial, palavra que anteriormente àquela Lei era até feio dizer, pois separada, principalmente a mulher, era um termo pejorativo, pois não é que as comadres daquela época adoravam informar o estado civil da fulana de tal era “separada”, e além do mais é necessário um motivo, uma razão muito forte para tal atitude.

-Meu marido tem outra mulher, respondeu-me aos soluços.

Após mais de 15 anos de casados e um filho adolescente, narrava dona Gioconda, estava desconfiada, quase na certeza que fora trocada por outra, pois os costumes do marido mudaram muito, chegava tarde à noite, saía de casa aos domingos sozinho e já não lhe dava a atenção alguma nem ouvia o que dizia.

Perguntei-lhe se tinha alguma prova da infidelidade conjugal, respondendo-me que não tinha, mas não era preciso, pois chegava o que já estava passando. Ficou sabendo, então, até muito contrariada, que para o processo litigioso, isto é “processo com briga”, eram necessárias provas documentais e testemunhais da conduta desonrosa do cônjuge e por isso aconselhei-a conversar com o marido e caso resolvessem conscientemente tomar o rumo da separação, fazê-lo por via judicial, porém, amigável, já que se torna mais rápido e podem contratar apenas um advogado, de comum acordo entre as duas partes.

Ficou de conversar com o marido e voltar, coisa que aconteceu uma semana depois, porém não obteve sucesso, já que o marido não respondia as suas interpelações, permanecendo imóvel, calado, ignorando as suas palavras ou apenas alegando que estava em companhia de seu colega de trabalho, o Celestino.

As suas vindas ao escritório se tornaram mais frequentes, quase diárias e sem solução.

-Estou ficando quase louca, doutor. Imagine que esta noite ele chegou perfumado, com um perfume bastante forte, irritante, vulgar como deve ser a sem-vergonha que estava com ele. Protestei, gritei, mas ele continua calado, não fala nada. Na hora lembrei-me de telefonar para o Celestino, seu melhor amigo, aquele com quem sempre diz estar quando eu pergunto, mas o Celestino desconversou, dizendo que eu estava sonhando, que não havia nada. Imagine doutor, eu a própria mulher dele é que sabia muito melhor que o amigo, por muito amigo que fosse não acha?

Até que um dia, veio com a notícia que após a esposa encontrar na carteira de documentos do marido uma fotografia da “sirigaita”, ele não pode mais calar e respondeu que a moça da foto era namorada do Celestino, até que depois de uns arremessos de pratos e panelas na cabeça do infeliz, este se deu por vencido e concordou com a separação judicial.

Dona Gioconda me mostrou a fotografia daquela provável amante, uma linda loura, reconhecida por mim como uma famosa artista do cinema nacional daquela época. Foi confirmado que era a artista, com os protestos de não saber como aquele homem feioso, pobre, apenas remediado financeiramente, na verdade fora capaz de conquistar uma artista bonita e famosa e lançando mil vezes a praga de que ele ia ter muito mais “chifres” do que ela ganhou.

Enfim, depois de demonstrado ter se tornado insuportável a vida em comum do casal, foi processada a separação judicial consensual, com a homologação da partilha dos bens do casal, a guarda e pensão do filho e tudo o mais resolvido, ficaram os honorários a serem pagos pelos dois, metade cada um.

A cliente pagou logo em seguida, porem a parte do agora ex-marido demorou cerca de 2 meses, fato ocorrido quando ele veio ao escritório e desculpando-se pela demora, aproveitou para consultar como proceder para casar novamente.

Expliquei-lhe que era necessário aguardar o tempo regulamentar e a partir daí proceder então a conversão da separação judicial em divórcio, nos termos do artigo 25 da Lei 6515/77, quando poderiam finalmente ambos livres, constituir nova família de direito, isto é casarem-se novamente.

-Mas, doutor, ouvi dizer que pode ser por contrato particular!

Na realidade, respondi, algumas pessoas costumam usar desse tipo de coisa e fazer um contrato, porém, não vejo impor a este o valor que se pretende, pois como numa sociedade comum, tal contrato, sob pena de nulidade, poderá dispor apenas sobre os direitos dos bens adquiridos ou trazidos àquela sociedade, sem jamais legitimar uma família constituída e assim estarem protegidos como na sociedade conjugal, sendo que somente esta pode regulamentar as obrigações, como a de coabitação e fidelidade recíproca, e os direitos, como por exemplo, o uso do nome ou a herança a ser deixada aos parentes, por qualquer das partes, assim como a obrigação de ambos quanto as dívidas contraídas e o direito sobre a propriedade dos bens frutos do trabalho em conjunto, na forma do Código Civil Brasileiro em vigor desde 1916.

Aproveitei, então, para indagar sobre o seu relacionamento com a mulher da foto, a bela artista, quando ouvi, surpreso a resposta:

-Na verdade, nunca houve aquela mulher, doutor. Usei apenas a foto de quem nem nunca vi pessoalmente, assim como um perfume pedido às vezes a algum amigo e até um longo fio de cabelos loiros tirados de uma colega de trabalho, para encenar com minha ex-esposa. Eu queria apenas ter sossego e desfrutar a agradável companhia de quem realmente me encantou, desde há algum tempo.

-Muito bem, então agora que já está tudo consumado e na santa paz, como é o nome dela?

Levantou-se calmamente e levemente enrubescido, ajeitando os cabelos com as pontas dos dedos, dirigiu-se lentamente em direção à porta e sem se despedir saiu, mas antes de fechá-la totalmente, já do lado de fora e com a cabeça para dentro, respondeu alto e em bom som, num tom meigo e carinhoso sem se preocupar em disfarçar uma fisionomia muito feliz:

- O nome dela é Celestino!