Dez por cento

Diz que a turma chegou do trabalho para beber umas e se estabeleceu no segundo boteco, já que o vizinho, verdadeiro ponto marcado, sequer abriu as portas naquela quinta-feira entregue às moscas. A historiadora pediu refrigerante e refrescou a goela para uma reunião logo mais, o artista aceitou uma cerveja e dividiu com o homem das letras. A psicopedagoga e a matemática curtiram uma vodka e por aí vai. Veio a garçonete serviu tudo nos conformes e mais uma dose de conversa para conquistar os clientes.

Papo sobre trabalho é inevitável nessas horas, mesmo no boteco. E conversa vai, conversa vem, chegou a hora da historiadora pisar no freio do lazer e ir ter lá com as consequências da profissão docente: reunião em plena quinta à noite. Prometeu voltar. Você liga. Não, vou passar por aqui e coisa e tal...

Hora da comida. Afinal, beber sem comer é o lema dos especialistas na área das bebedeiras. Para os meios-termos, prevenção é o melhor remédio. Vá dar ousadias a uma espaçosa ressaca e está comprometida a sexta-feira de trabalho! Lambretas com urgência! E dá cá mais umas cervejas quando chegar a comida.

Horas avante e, lá para as tantas, alguém considera que é chegada a vez de pedir a conta.

E aí se dá o inusitado. Garçonete, em boca miúda, diz que o patrão não tem amor as causas trabalhistas porque não libera os dez por cento para os empregados. O tom é de lamentação para convencer os intelectuais. Se afasta. Patrão relaxado na cadeira e outra atendente meia-atenta. Os cultos catam dinheiro de um e outro; quem não bebeu paga os da amante das causas do trabalhador.

No instante de dar a soma, mais essa: a outra, de olho em cada detalhe, é quem cobra; aquela só serve. Pois o artista, surpreso pela divisão do trabalho repentino, puxa os dez por cento, mas só entrega o valor de consumo. Erro fatal! Vem a astuta e bota a mão na grana e agradece. Intelectuais conversam, patrão manda chamar a moça e a cobradora não desvia a atenção dos novos clientes.

Vamos sair daqui antes que o patrão venha tirar satisfação. Depois, já viu, ter de pagar outra conta é dose!

Resultado: debandaram sem saber se era malandragem rotineira da empregada que servia ou exploração do dono mesmo. Se quiser a resposta, vá lá no bar que fica no fim de linha, logo ali. O causo não espera. Fecha a conta aqui. E quem quiser que conte outro.

em out/2005

Felippe Serpa
Enviado por Felippe Serpa em 12/10/2005
Reeditado em 06/11/2005
Código do texto: T59216