Cheguei exausto ao Albergue Municipal de Pamplona, mas já estava lotado.
Resolvi perguntar ali mesmo onde poderia encontrar um hostal, que normalmente variam entre 20 e 40 euros, quando tive minha atenção despertada por um homem e duas mulheres com o mesmo problema. Ele chamava-se Jerry, um padre Irlandês que fazia o Caminho sozinho, como mais tarde viria a saber. As mulheres eram duas australianas de cujos nomes não me recordo. Juntei-me a eles, já que estávamos todos no mesmo barco e após as apresentações de praxe, como: "what's your name" e "where are you from", Jerry me disse que haviam sido informados da existência de um hostal modesto (Pensión Eslava), mas situado em pleno centro de Pamplona, onde poderíamos encontrar quartos para duas pessoas cada, com banho no corredor.

Fomos os quatro batendo papo pelas vielas seculares, rindo de nossas topadas e desenganos, até que chegamos ao local desejado onde constatamos haver vagas - exatamente dois quartos. O preço era justo: 30 euros por quarto que dividi com Jerry. As duas australianas ficaram com o outro quarto e não mais nos veríamos.

Deixei Jerry tomar banho primeiro. Aproveitei para jogar todo o conteúdo da minha mochila sobre a minha cama e comecei a procurar por itens supérfluos, pois achava que estava demasiadamente pesada.
Acabei eliminando muita coisa como vários sabonetes, idem tubos de creme dental, aparelhos de barba descartáveis, loção após barba, diversos pares de meia, uma bússola, desodorante, um apito (por que raios eu tinha trazido isso?). Me desfiz também de parte da minha roupa (fiquei só com 3 bermudas, 3 cuecas, 3 camisas, 1 casaco de frio, uma calça e uma só toalha de banho).

No Caminho a gente aprende a ter menos. Constatamos que não necessitamos de muito para viver nossas vidas e que a maioria das coisas e bens materiais que possuímos, são apenas excessos - nada mais. Quantas vezes nem lembramos das roupas e sapatos que temos nos armários? De Saint-Jean a Pamplona, aprendi que míseros gramas fazem muita diferença num percurso de 70 km que era o que eu tinha andado até aqui.

Jerry saiu do banho e disse que me esperaria num determinado bar no centro de Pamplona para conversarmos e tomarmos umas cervejas.
Após o meu banho desci e comecei a procurar por ele buscando o tal bar cujo nome, confesso, não havia memorizado muito bem.

Sem conseguir encontrar nem um, nem outro (a noite em Pamplona estava animada, com muita gente nas ruas e nos bares), resolvi jantar e voltar para o quarto, onde me joguei na cama e adormeci imediatamente. Percebi quando Jerry chegou, bem mais tarde, mas fingi estar dormindo. Ele se recolheu sem dizer nada.

Na manhã seguinte, meio aborrecido, ele quis saber o porquê de eu não ter cumprido com o combinado na noite anterior. Após minhas vagas explicações, que aparentemente não o convenceram, saímos do hostal e fomos tomar café para logo depois iniciarmos nossa caminhada. Como de praxe, comecei a parar para fazer minhas fotos o que acabou por aborrecê-lo, pois ele tinha pressa. Disse-me então que iria seguir sozinho para Puente la Reina, caso eu não me importasse.

Era tudo o que eu queria e continuei andando aproveitando cada passo para admirar as belezas do Caminho.
Caminhei muito naquele dia de sol causticante. Após chegar ao Alto Del Monte Perdón, descansei um pouco e iniciei a bem inclinada e perigosa descida para Uterga, cheia de pedras soltas e areia escorregadia.

Pouco antes da entrada desse "pueblo" de 170 habitantes, existe uma linda estátua conhecida como - A Virgen de Uterga. Contam que um peregrino sentiu-se mal do coração quando por ali passava e caiu fragorosamente ao chão. Socorrido pela ambulância, foi mais tarde aconselhado pelo médico em Pamplona a interromper imediatamente sua caminhada e voltar pra casa.
Este então rezou à virgem e prometeu que se conseguisse concluir o Caminho retornaria mais tarde para mandar fazer uma estátua em sua honra para colocá-la exatamente no local onde havia tombado. Na manhã seguinte acordou disposto e continuou sua marcha sob os olhares atônitos da equipe médica. Não preciso contar o final, pois a estátua está lá.

Após Uterga, cruzei Muruzábal e parei em Óbanos para mais um canecão de cerveja, pois ninguém é de ferro como as figuras do "Alto del Perdón". Após caminhar mais 2,5 km entrei empoeirado, suado e exausto em Puente la Reina, onde para minha grande surpresa encontrei Jerry que apontando para um bar foi logo dizendo: "vai pro albergue deixar tuas coisas e venhas aqui pra gente tomar aquela cerveja que não tomamos em Pamplona". Concordei e fui andando. Ele não satisfeito disparou: "sem desculpas dessa vez, hein?".

Puente la Reina (Gares, em Basco) é uma daquelas lindas cidades que nasceram por causa do Caminho de Santiago e que dele muito dependem até hoje. Ali se unem as trilhas que começam em Saint-Jean Pied-de-Port (Caminho Francês) e em Somport (Caminho Aragonês). Remonta à Idade Média e tem entre seus destaques a Igreja do Crucifixo ligada à Ordem dos Templários, em cujo interior se encontra um lindo trabalho em madeira de um Cristo Crucificado com os braços em "Y", (dizem ser a única cruz existente no mundo nesse formato). Outra joia singular é a ponte sobre o rio Arga, em estilo românico, mandada construir pela Rainha da Navarra, Doña Mayor no século XI, para facilitar o deslocamento dos peregrinos que antes tinham que fazer a travessia de barco.

Fiquei no Albergue de Peregrinos dos Padres Reparadores, logo na entrada da cidade. Marquei minha cama colocando sobre ela meu saco de dormir, tomei meu banho, fiz a barba, lavei e estendi minha roupa no varal do pátio e fui imediatamente encontrar Jerry, o padre irlandês que havia conhecido em Pamplona. Ele devia estar impaciente.

Mas para minha surpresa, ele não estava lá. Resolvi sentar-me e pedir um canecão de cerveja que veio acompanhado do icônico pratinho de "tapas". Depois de uns 20 minutos chegou Jerry com um enorme Guia do Caminho, quase um catálogo telefônico.
- É pra você, disse-me.
Agradeci e falei que não poderia aceitar. Ele insistiu muito dizendo que era um presente especial. Acabei concordando, mas estava convicto que por trás da gentileza ele também estava querendo livrar-se do peso que aquilo representava.

Ficamos ali batendo papo enquanto as canecas de cerveja se sucediam num vaivém preocupante. Jerry é o que nós conhecemos como "bom de copo" e eu me esforçava muito para acompanhá-lo. Contou-me sobre sua vida na Irlanda e a descoberta da sua vocação religiosa.
Falei-lhe também de minha família e de mim, da vida no Rio de Janeiro, dos problemas do nosso país, etc., etc., mas que precisava voltar ao albergue, pois este fechava pontualmente às 22H00. Ele havia se hospedado num hostal e não tinha esse problema.

Finalmente ele concordou e tirou do bolso sua câmera fotográfica, pedindo para o dono do bar tirar uma foto nossa.
Observei que era idêntica a uma que eu achara na praia numa das minhas caminhadas matinais e que conseguira devolvê-la à legítima dona semanas depois, através de uma pesquisa minuciosa nas fotos que estavam nela. Mais um canecão de chope e contei a Jerry esse acontecimento. Ele se levantou e me deu um forte abraço aprovando emocionado minha atitude: "You did right my friend Sergio - You're a good man".

Despedimo-nos com um longo abraço e voltei ao albergue meio trôpego (não era pra menos) e já no limite do horário de fechamento de suas portas, admirando as ruas medievais daquela linda cidade que agora se iluminava de uma luz dourada com o conluio e a magia de seus graciosos lampiões.

Eta padre bom de copo!!!!!

E assim acabou o meu dia – eu era feliz, e sabia....
 
 
 
 
Sergio Righy
Enviado por Sergio Righy em 30/09/2017
Reeditado em 04/05/2021
Código do texto: T6128788
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