Acordei bem tarde no Albergue de Peregrinos de Ponferrada e fui tomar café na padaria do outro lado da estrada. Ao consultar minha correspondência eletrônica, descobri um e-mail de Paulo, o “Dom Quixote”, e de sua esposa Marta, aquele casal de vi desaparecer em meio ao nevoeiro nos Pirineus no primeiro dia de caminhada e de quem não mais havia tido notícias.
Paulo me alertava para as terríveis condições atmosféricas que encontraram quando passaram por Villafranca Del Bierzo, inclusive com precipitação de neve, exatamente 23 km à frente de onde eu estava. Coloquei o pé na estrada pensando no longo percurso que havia feito na véspera desde Rabanal Del Camino. Eu ainda não estava totalmente recuperado e achei que seria melhor não forçar muito o passo.
Fui deixando Ponferrada para trás, aos pouquinhos. De vez em quando me girava e tentava avistar o lindo Castelo dos Templários, mas altos edifícios bloqueavam minha visão.
Logo passei por Columbrianos, depois por Fuentes Novas e Camponaraya, todas cidadezinhas situadas na Comarca Administrativa de El Bierzo, que tem na vinicultura uma de suas principais atividades. Andei vários quilômetros por retas trilhas que margeavam imensos parreirais. Era praticamente impossível olhar em qualquer direção sem avistar um cacho de uvas ou descobrir uma nova vinícola nas redondezas.
Caminhava me deliciando com o alegre canto dos pássaros naquela linda manhã ensolarada, quando um pouco mais à frente já fora dessa área privada, começaram a aparecer várias árvores pequenas margeando a estrada. Observei que estavam carregadas de frutos de cor vermelha. O que seria aquilo? Resolvi chegar mais perto e verificar, já que não havia nenhuma cerca ou aviso impedindo que eu o fizesse.
Não pude acreditar: eram cerejas e bem maduras. Colhi várias delas e sentei-me à beira da estrada, empanturrando-me tranquilamente.
Outros peregrinos que vinham logo atrás resolveram fazer o mesmo. Pela primeira vez na vida eu havia comido uma cereja sem ser aquela em conserva dos bolos de aniversário - e colhida da própria árvore.
Segui em frente, mas logo percebi que não aguentaria chegar a Villafranca Del Bierzo. Os excessos da véspera estavam cobrando seu preço. Entrei em Cacabelos e foi “amor à primeira vista”. Adorei aquela simpática cidadezinha com pouco mais de 5.000 habitantes.
Logo na entrada pela “Calle Cimadevilla”, você passa por construções bens simples com paredes de Pau a Pique, todas com uma varanda no andar de cima projetada até o meio da calçada. Pela primeira vez eu vi e consegui passar embaixo de uma marquise na Espanha, embora bastante rudimentar. Pouco adiante, à direita, fiquei curioso ao ver uma pequena igreja toda em pedra. Era dedicada a São Roque. Dentro um simpático senhor explicava aos peregrinos os dados sobre sua construção e a história de cada imagem, que me pareceram muito novas.
Ele veio até mim e perguntou-me em bom português: “és brasileiro de onde”? Certamente havia visto minha bandeirinha do Brasil na Mochila, concluí. Era espanhol e chamava-se Antonio.
- Do Rio de Janeiro, falei.
- Eu morei no Rio de Janeiro por muitos anos no bairro de Botafogo. Tenho mulher e filhos brasileiros. De vez em quando vou lá pra matar as saudades da cidade e dos amigos. Agora estamos morando todos aqui em Cacabelos, disse.
- Mas por que você tomou essa decisão?
- Não deu pra continuar morando lá por causa da violência. Todos os meus filhos foram assaltados. Até eu mesmo que tinha um comércio no bairro, fui assaltado diversas vezes. Resolvi vender tudo e vir para cá. Ainda gostamos muito do Brasil, mas morar lá não dá mais.

Fiquei triste por Antonio e sua família, mas não pude contradizê-lo em nada do que havia dito. Assim como o estupro, as mudanças forçadas de vida nunca deveriam existir.

Que pena......

 
Sergio Righy
Enviado por Sergio Righy em 30/09/2017
Reeditado em 09/10/2017
Código do texto: T6128959
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