O SONHO DE UM CORONEL MACHISTA 20º EPISÓDIO

Ao retornar de seu encontro como Dentuço. Para justiçar sua ausência e não despertar suspeitas em seus escravos, o coronel chegou ao seu curral tangendo um lote de gado. Ao vê-lo Bastião foi ao seu encontro abriu a porteira, ajudou a fechar o rebanho e comentou
Hoje é dumingo, dia do coroné discançá, se mim fala, ieu juntava o gado pru sinhô.
--Tem coisa qui é mió ieu memo fazê Bastião, assim ieu apruveito pra cunfirí a pastage se tá na hora de fazê a roçada, virificá tapume ô mudá gado de lugá. Voismicê vai ponhá sal no cocho e mais tarde a boquinha da noite, abre a portera pra o gado saí na hora qui quizé-, ah sorta minha mula tumém, lava o lombo dela e bota uhas ispiga de mio no cocho pra ela. Ota coisa bastião donde foi qui Inaça vossa mulé andô antes de onte?
-- Uai coroné tô sabeno nun sinhô!
-- Qui marido é voismicê qui a mulé sai de casa e ele num dá nutiça?
-- Coroné antes de onte idesdesda hora qui o sinhô foi levá o de cumê pru Terenço na rancação das erva, ieu num dispreguei o imbigo da berada da taxa apurano rapadura, o qui passô na casa grande, num sei num sinhô, pregunta pro Nicó, ieu vi ele atrelano os cavalo na carruage, se inaça saiu foi cuele, dia desses ieu vi ela falano quel tava quereno levá ela in Bom Jardim mode comprá uas ropa quele tá pricisano. Ma se eze foi isso ieu num sei num sinhô coroné!
-- ieu vô tirá isso a limpo e dotra veis qui Nicó fô compra ropa ieu vô junto, issaí tem mutrêta desses dois eze tão pensano qui mi ingana ma inganado vai sê eze!
Bastião encheu de preocupação e mais tarde foi falar com Inácia que o tranqüilizou dizendo que o coronel não tinha como saber, pois realmente havia efetuado a compra das roupas há alguns dias, que, aliás, já estavam na costureira. Aproveitando o sumiço do coronel, que na ausência de Terencio que teve viajando passou todo o tempo na casa dele com sua mulher de quem era amante.
- óia Inaça voismicê num abusa cum coroné o coração dele é de pedra ele só tem bondade cum Terencio, ondé qui voismicê acha quele arrumô os cobre mode i visitá a mãe lá nessa lunjura, foi coroné qui deu, falô quele vai pagá arrancano erva, paga nada, qui paga o que, vai tudo PA conta da jurema. Ieu acho é bão e poco quem mandô o Terencio sê bobão tem memo é qui levá chifre. Inquantisso nois é vigiado pur Nicó qui tem bão coração e nun judia de nois né memo?
--Oia bastião se Voismicê vê cumo o coromé Tiburcio mais sinhá Maricota trata os iscravo, eze come na mema mesa junto, inté Nicó ficô abismado quando ele mandô nois senta mode cumê junto mais Prudêncio Inaça e as iscrava qui tava trabaiano lá pus terrero. Ma coitado do Nicó perdeu a viaje Dusanjo a fia do coroné tava pra casa de vó. Ma coroné Tiburcio falô mode ele vortá lá noto dia mode prusiá cuela, parece qui coroné gostô dele. Ah ma se coroné Certorio sabê disso ieu num quero nem ta perto. Tumara qui Dusanjo teje pensano cumo Nicó in acabá quesse perrengue das duas famia!
--É mais coroné Certorio tem coração de pedra i num vai pirmiti cum fio dele mistura cum famia Montenegro mais nem cu diabo tussa. Ele já falô qui inté dispois de morrê vorta mode vingá dargum qui disobedecê sua orde inventá casá quessa gente.
O barulho do coronel pisando no assoalho quando entrou na sala da casa grande fez o casal de escravos interromperem a prosa e como se nada tivesse acontecendo Inácia foi passar o café cuja água fervia no fogão a lenha. Sem dizer palavra alguma, o coronel assentou-se à mesa Inácia lhe serviu o jantar, em silencio ele terminou sua refeição. Cabisbaixo, apenas ordenou a bastião que chamasse seu filho. Minutos depois Nicó entra e pergunta:
-- Chamou ieu pra quê meu pai, qui o sinhô deseja?
-- Senta aí Nicó vamo tê um dedo de prosa-, voismicê tumém Inaça senta aqui! Agora voismicêis os dois vai logo dizeno cum orde de quem qui foro lá na fazenda Bocaina, prusiá cum o povo de lá-, isquecero qui ieu inda tô vivo? Cumo foro passá purriba das ordes qui ieu dei?
-Óia meu pai ieu já tenho quais trinta ano, i nun vô ficá andano dibaxo da aba do vosso chapéu mais não viste, ieu sô dono do meu nariz vô fazê o qui ieu bem quero, voismicê num pode infiá sua cuié de pau na minha vida nun sinhô. Ieu fui memo i coroné Tiburcio recebeu nois de baço aberto, fez questã de cumê cagente na mema mesa cus iscravo dele junto tumem, ficam o sinhô sabeno qui lá iscravo é iguar a gente nun é iguar voismicê trata o nosso nun sinhô, iguar cachorro.
-- Voismicê mim respeita Nicó ieu sô vosso pai, já viste!
-- Pai, qui pai qui tenho, qui vive martratano tudo qui gente pensano qui é dono do mundo. Fique sabeno coroné Certorio qui dagora pra diente ieu vô quantas veis quizé lá na Bocaina vô pidi a mão de Dusanjo in casamento i ninguém vai mim impidí!
É mais face ieu isquecê qui voismicê é meu fio de quê acuntecê ua disgraça dessa, sô capais de manda te matá!
-- Intonse pode contratá o pistolero mode fazê o sirviço, pruquê se fô dependê dieu te obedecê já só um home morto. Ieu nun sô mais vosso fio, nun quero sê tumem não. E pur falá in pistolero ondé qui tá Barba Ruiva mais Banguela e Cavera, o qui voismicê feis deze?
-- Ieu já cuntei pra voismicê qui acertei as conta cueze i mandei i simbora nun quero mais Sabê de capataz qui nun cumpre as orde dereito.
--Pois é agora sinhô tai ó, nun tem quem cuida de vossas coisas suja e mar feita, inté pra matá o vosso fio único tem de saí i pagá um pistolero, má nem percisa não voismicê memo pode fazê esse sirviço, pois nun tem coração memo. Agora memo ieu tô ino simbora daqui, nun fico mais nem um dia aqui, ieu tem coraje pra trabaiá num perciso da sua riqueza qui tem gosto de sangue humano não coroné!
--Óia Nicó fais isso não ieu ritiro o qui falei, fica aí fio ieu priciso de voismicê, inda vô sê dono dessa terra qui tem pra aí a fora tudo dispois vai sê tudo sua.
--Aí o sinhô só pensa in riqueza e podê meu pai, nun da mais não, ieu tô cansado de vossas mardade!
-- Bastião voismicê vai à senzala apruveita qui os iscravo tão tudo riunido pru lá fala pra vim tudos aqui pru pátio mode nois tê ua prosa.
--Inté as criança tumem coroné?
--ieu num falei tudo mundo bastião, as criança tumem!
Enquanto isso o coronel tirou da cintura uma penca de chaves e abriu a porta de um quarto o qual só ele tinha acesso, nem mesmo seu filho nunca entrou nele. Voltou com um frasco de vidro na mão, e disse ao Nicó e Inácia:
-- ieu quero mostrá pra voismiceis dois, essa coisa qui ieu tenho pra mode qui voismiceis, deve de tá se preguntano quem foi qui mim contô qui tivero de prosa cum coroné lá na Bocaina-, primero voismicê Inaça dispois Nicó. Intonse o qui viro aí dento?
--Ieu coroné vi um musquito paricido cum bizorro inté chifre tem. Isso nun parece coisa desse mundo nun sinhô!
-- Pois é inté nesse dia de hoje, voismiceis dois é os primero de vê e sabê qui coroné Certorio; qui é vosso pai Nicó, tem um diabinho preso, qui sabe de tudo qui passa e tudo qui é pobrema inrredó dessa terra de Morrinho. Agora somo nóis treis qui sabe dele, e voismiceis nun viro nada nun sabe de nada. E nunca vai contá nadica de nada pra ninguém. Ma cuidado pruquê cuele num tem perdão, ele só dexô ieu mostrá pra voismiceis pru quê sabe qui in voismiceis pode cunfiá. Foi ele Nicó qui deu orde mode ieu dispensá o Barba Ruiva mais aqueze dois marditos qui tava cumeçano dá probrema. Ma voismiceis pode ficá sussegado, ele num vai atazaná voismiceis não é só num disafiá ele qui nun acuntece nada de mal.
O coronel entrou no quarto e guardou seu diabinho trancou a porta e saiu pra fora rumo ao pátio Nicó e Inácia o acompanhou.
Reunidos todos os escravos encostados na cerca o coronel ordenou que se posicionassem em circulo ao seu redor, mas o pátio ficou pequeno para tantos escravos. Então ele os ordenou que o acompanhassem ao curral, se posicionou no centro colocando Nicó ao seu lado e começou a falar;
-- Ieu dei essa orde mode voismiceis ajuntá aqui pruquê de agora pra frente quem vai da às orde aqui pra voismiceis é meu fio Nicó ele ta quereno e simbora, dizeno qui o jeito qui ieu trato voismiceis num é bão, intonse ieu arrisurvi intregá pra ele. Ma nun vai voismiceis pensá qui ieu num vô castigá quando ieu bem quizé não, qui vô cuntinuá o memo coroné Certorio pricisô vai sê ieu qui vô decê a chibata no vosso lombo. Pra cumeçá inaça vai drumi marrada no tronco hoje, e ganhá oito chibatadas, sexta fera ela passô purriba das minhas orde e foi La pra Bocaina prusiá cua irmã dela Inhá chica. Agora voismiceis vai tudo pra senzala e num quero ninhum fora de lá inté amanhã na hora de garra no trabaio. Se argum disobedecê e saí mode vim bisbiotá inaça, vai sê marrado junto quela e ganhá a mesma chibatada qui vô dá nela. Todo mundo intendeu?
E assim que todos recolheram revoltado Nicó protestou dizendo ao pai que sua proposta era inaceitável e que ele não ficaria nem mais um dia na fazenda. E que tomaria o lugar de Inácia no tronco inclusive as chibatadas teriam que ser nele o único culpado pela visita lá na Bocaina.
---Oía Nicó voismicê nun intendeu ieu num vô castigá Ináça mais é priciso queze fica imaginano quela foi castigada mode eze obedecê a gente, voismicê num vai simbora não vô dexá voismicê fazê cumu sempre quis, isquece da prosa qui falei in te matá a dispois ieu sei do amor qui tem pra inaça mais bastião, voismicê fica pur eze. Num vive dizeno queze é cumo pai mãe pra voismicê.
Nicó tinha o coração de manteiga saiu à mãe que em vida sempre foi tolerante e suportou com resignação as maldades do marido. Embora sabendo que tudo aquilo era falsidade do pai resolveu ficar pelo menos por uns tempos, poderia amenizar um pouco a vida sofrida dos mais de cinqüenta escravos de seu pai.
Com o rosto banhado de lágrimas Bastião agradeceu a Nicó por sua compreensão e o sacrifício que fizera por eles ao enfrentar a fúria do pai.
Geraldinho do Engenho
Enviado por Geraldinho do Engenho em 22/10/2017
Reeditado em 22/10/2017
Código do texto: T6149528
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