A "OREIA" DO XICO PAULISTA

A “OREIA” DO XICO PAULISTA

Por Andrade Jorge

Chegou a noite tão esperada lá pelas bandas do Arraial de Santo Antão. Até chegar esse dia, a lida fora dura o mês inteiro naquelas terras secas e áridas. A busca de água para os animais, a plantação e corte de palma para o sustento dos bichos e muitas vezes das próprias famílias, também era um trabalho incessante. Mas naquela noite a tristeza não foi convidada, era noite de música, forró arretado.

O pessoal foi chegando no barracão de chão batido. Num canto um improvisado balcão servia de bar, onde a cachaça descia rápida. As mulheres formavam rodinhas de um lado, os homens de outro. Elas conversavam mais timidamente, riam comedidamente, por vezes lançavam olhares furtivos em direção à roda dos homens. No meio das moças estava Lindaura, morena bonita. Os homens conversavam desbragadamente, falavam alto, até mesmo para chamar atenção das moçoilas.

E regado à cachaça, tudo que era assunto ia sendo discutido. Entre eles havia um novato, o Xico Paulista, nascido no interior de São Paulo.

O papo rolava, quando um trotear de cavalo anunciou a chegada de Didi da Porteira; tinha esse apelido porque gostava de ficar trepado nas porteiras da fazenda quando era moleque. Didi entrou no barracão; cruzado no peito, o talabarte que sustentava a espingarda lazarina, que ele se orgulhava em dizer que fora presente de Lampião ao seu falecido pai.

Didi colocava sua “namorada", como ele chamava sua espingarda, pendurada na parede e ai daquele que colocasse a mão na sua joia. Depois ia cumprimentar os amigos e tomar seu gole da “marvada”. A conversa se alongava animadamente, quando alguém falou sobre as peripécias de Lampião no tempo de cangaço, talvez motivado pela chegada de Didi com sua espingarda, supostamente presente do cangaceiro. E Zé Bode disse:

- Lampião ainda vadeia por esse sertão de meu Deus fazendo das suas!

- Verdade memo cumpadre! Ouvi dizê que ele apareceu numa festança por aí, concordou Anastácio.

Xico Paulista ali ouvindo a conversa, se coçava, se remoía, até que não se conteve mais.

- Tudo bestera! Tudo ignorânça desse povo, Lampião tá morto e bem mortinho, e quem tá morto não aparece não. Já foi, já era.

Discordando do Xico Paulista, Zé Bento se intrometeu na conversa:

- Tu não é nordestino, ô cabra, e não pode dizê isso não, proque não conhece as coisas da nossa terra, as coisas do sertão! E Anastácio emendou:

- Ô xente! Ta chamando nóis de mentiroso, tá? Ta mangando de nóis, tá?

Xico Paulista já ia retrucar, não fosse os músicos começarem a tocar, e começaram justamente pra terminar aquela pendenga. E a música encheu o barracão.

Os músicos formavam um quarteto: Zé Lino no pandeiro, Zé Mica na zabumba, Dentinho no triângulo e Quincas na sanfona.

O chão do terreiro se agitou com o forró. Os homens foram escolhendo suas damas e vice-versa. E lá estava Lindaura, longos cabelos negros, vestido rendado, largo sorriso. Diziam que ela era tataraneta de Lampião, mas ninguém sabia se era fato verídico. Lindaura era moça manhosa, mas trabalhadeira, não tinha namorado porque não queria, e não queria porque gostava de viver livre, pretendentes não lhe faltava.

O forró seguia alegre, o suor descia, a poeira levantava. Lá pelas tantas os músicos atacaram de xaxado. Imediatamente Lindaura segurou nas pontas de sua saia rendada, colocou a mão na cintura, dando aquele ar de sensualidade, seus pés começaram a desenhar no chão batido os passos do xaxado. Ela ria, volteava, os pés deslizavam com aquele chiado característico da dança. Homens e mulheres fizeram um círculo em torno dela. Para os homens era uma visão imperdível, colírio para os olhos. E ela rodava o terrreiro no embalo do xaxado, e suas belas coxas, por ora, ficavam expostas à vista daqueles peões sedentos. Os olhos daqueles homens pareciam que iam saltar, a moça estava sendo devorada com aqueles olhares. E Lindaura rodava no xaxado.

Até que Xico Paulista não aguentando mais ver aquele corpo trigueiro deslizando à sua frente, ousadamente correu a mão nas coxas da bela morena. Lindaura parou de dançar. Anunciava-se encrenca e das grossas. Estancou no meio do terreiro, a faceirice, a brejeirice, desapareceram da face da moça, tomou lugar uma expressão feroz, dura. Lançou um olhar frio, sinistro, aterrorizante em direção a Xico Paulista, o cabra que tinha passado dos limites. Xico, porém não se intimidou com aquele olhar, pois era tido como homem valente, segundo contam chegou fugido de São Paulo, jurado de morte, por haver feito muitas estripulias por lá. E foi dizendo:

- O que que há moça, num gosta de cabra macho não?

Não deu tempo de nenhum homem presente tomar qualquer atitude contra o abusado. Lindaura, olhar esbugalhado, girou a cabeça como a procurar alguma coisa e ágil feito uma gazela correndo nos campos, passou a mão na espingarda lazarina, a espingarda de Didi da Porteira, que estava pendurada na parede. Apontou na direção do Xico e disparou. Pum! Esfumaçou o barracão. Ouviu-se um berro aterrorizado do cabra abusado, a fumaça foi dissipando e o povo viu o estrago, o tiro arrancou um pedaço da orelha do safado. E Lindaura ali parada no centro do terreiro, com o mesmo olhar de antes, falou pro desafeto:

- “Não lhe matei proque hoje to muito feliz visse? E proque quero que vosmecê se alembre desse dia pro resto dessa sua vida sem valor. Vai aprender cabra da peste, fio de rapariga, que não se bole onde não se pode bulir, proque macho que se assanha, sem respeito, pra cima de meu sangue, merece ponta de faca que tiro é pouco”.

Quem estava lá, jura de pé junto que a voz de Lindaura se modificou ao dizer essas palavras, ficou grossa, seca. E após proferir esta sentença, Lindaura levantou a mão e acenou para os músicos tocarem. Estes imediatamente atenderam, e o xaxado reiniciou e ela saiu rodopiando e cantando:

- “É lampa, é lampa, é lampa, é lampa, é lampião, pro amigo faço tudo, do inimigo não tenho dó não...”

A poeira levantava. A moça dançava ainda segurando a espingarda. Didi já estava impaciente, pois sua “namorada” estava bailando na mão de Lindaura. Foi quando a morena parou à sua frente e falando com aquela voz estranha:

-“Se avexe não seu moço, essa espingarda conheço bem, nas cuspidas dessa lazarina muitos volantes safados tombô e muito Coroné dito valente foi pros quinto do inferno. Oia bem, cada risco no cano, um que se escafedeu, e cuida que tem pra mais de cem risco. Guarde bem proque Zé Baiano, vosso falecido pai, mereceu o presente”.

Entregou a espingarda e saiu rodopiando. Didi da Porteira ficou ali parado, boquiaberto. De repente ela caiu no meio do terreiro desmaiada. Socorrida, acordou assustada com aquela gentarada olhando pra sua cara.

- Vixe minha Nossa Senhora! O que to fazendo deitada aqui?

O Veio Nhô que estava quietinho no seu canto, cachimbando seu cachimbo de barro, assistindo a tudo, se aproximou e apressou em responder:

___ Ô xente! Se avexe não, menina! Foi Lampião, o tinhoso, que alumiou o terreiro, pra modo de ensinar o cabra safado a respeitá nossas mulê.

Lá fora. Xico Paulista gemia num canto, sem um pedaço de orelha, e dizia com seus botões

- Ainda bem que a moça é ruim de mira...

Depois disso, O Xico Paulista sumiu do lugar, ninguém mais viu o abusado por aquelas bandas.

O tempo passou.

Numa pequena cidade do norte de Minas Gerais, já noitinha, numa animada roda de prosa, tinha um sujeito que se destacava contando seus “causos” era um tal Francisco. E um dos ouvintes perguntou:

- O amigo me descurpe, mas que aconteceu com vossa oreia, que tá fartando um pedaço?

Francisco respondeu sem pestanejar:

- Olhe, isso foi obra de um bando de jagunço, quando fui defender a honra de uma moça que estava sendo atacada, lá pelas bandas do nordeste. Um dos jagunços amirô na minha cabeça e atirô, se não sou esperto morria ali, o tiro pegou na minha oreia, mas arranquei a arma do cabra e botei todo mundo pra correr.

Terminada a explicação do caso, assim do nada Francisco sentiu um tremendo chute no traseiro, que o jogou no meio da roda, caindo de bunda no chão. E alguém perguntou:

- O que foi amigo? Ninguém lhe encostou, como foi parar de bunda no chão, sô?

Francisco levantou-se sem graça e disse:

- Sei não, a prosa tá boa, mas preciso ir andando, até mais ver.

E saiu ligeiro.

Zé Paraíba, um dos homens da roda, assim que Francisco foi embora, comentou:

- Ó xente! A história desse tal Francisco tá estranha, tá parecendo uma que fiquei sabendo de um cumpadre que mora nas bandas de Santo Antão, no sertão do nordeste. Lá um cabra mexeu com uma morena e ela deu um tiro na oreia do safado. A moça, dizia o povo, tinha sangue de Lampião nas veia, e há quem diga que foi ele que baixô no barracão da festa, e feiz a desgracera. O nome do abusado era Xico Paulista, será que o Xico de lá não é esse tal Francisco daqui? Se não for tem oreia demais nesse “causo”.

FIM

Do livro Contos, En...cantos&Peripécias (Oficina editores)

ANDRADE JORGE
Enviado por ANDRADE JORGE em 23/10/2017
Reeditado em 09/06/2023
Código do texto: T6150257
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