Discórdia Contemporânea

Esses dias me lembrei de um causo.

Quem me contou foi tio Olavo, que jura até hoje, com seus 82 anos, se tratar de uma história verídica.

Dizia ele que em um vilarejo do interior, ganhou fama um restaurante de propriedade do Sr. Pedro, dado ao sabor e tempero de seus pratos. Mas não era só isso. O local era muito agradável, amplo, cercado de árvores e natureza abundante. Famílias inteiras frequentavam o local para se deliciarem com a leitoa a passarinho. Não menos saboroso, o frango sequinho e a bisteca bovina, que quase não cabia no prato. A comida era farta. Sempre sobrava. O Sr. Pedro era quem criava os bichinhos em seu próprio sítio.

O estabelecimento servia a comida em uma grande varanda coberta, da qual era possível ver a cozinha, cheirosa e limpinha. Mas a maioria das pessoas preferiam as mesas externas, à sombra das árvores e frescor da leve brisa que soprava naquela região de montanha. Não demorou muito, e o local já recebia pessoas de cidades vizinhas, com seus carros lotados e até mesmo coronéis e autoridades. Tinha espaço para todos. Passados mais alguns anos, as datas festivas do vilarejo passaram a ser comemoradas no próprio restaurante do Sr. Pedro, com direito a sanfoneiro, músicas, danças e brincadeiras entre os que ali frequentavam.

O Sr. Pedro, que era conhecido e querido de todos, nunca foi tão feliz.

Passado algum tempo, notou-se que além dos pássaros comuns à região, um grupo de pombos que vivia na cidade próxima ao vilarejo migrou para o restaurante do Sr. Pedro, atraídos pela comida farta e facilitada. No início, os clientes nem se importavam, afinal, ali estavam para relaxar e saborear uma boa comida. Atração à parte, as crianças ansiavam chegar o dia de irem ao restaurante para poder levar suas espigas de milho secas e debulhar aos pombos. Interagiam com os pombos ali na grama mesmo. Não demorou e a revoada de pombos era enorme e passou a dividir opiniões entre amigos e frequentadores do local.

Claudio passou a se queixar com o Sr. Pedro, pois sempre que voltava do restaurante, era obrigado a lavar o seu carro, pois voltava cheio de marcas das fezes dos pombos. A Dona Maria, que frequentava o local e era madrinha de Claudio, ouvindo tal queixa, disse-lhe que este deveria passar a vir a pé ao restaurante, como ela, do que invocar com os pobres pássaros e que era ridículo comparar a presença e liberdade dos pombos com o aborrecimento por seu carro sujo. Descobriu-se depois que Dona Maria morava a duzentos metros do local, no próprio vilarejo e Claudio, era morador da cidade vizinha.

Debaixo das árvores, clientes já satisfeitos alimentavam os pombinhos com seus restos de comida, se divertiam e partiam para suas casas, felizes. Era frequente pombo caminhando por debaixo das mesas a procura de alimentos daqueles que não se interessavam de tamanha interação. Por raras vezes, via-se até furto de nacos de comida sobre a mesa pelos pombos mais atrevidos, que saiam voando alegremente. Uns riam. Outros torciam o nariz. Comentários começaram a surgir. Algumas crianças passaram a adoecer e a contraírem doenças de pele. Uns afirmavam que a causa era as fezes dos pombos, outros que era coincidência.

Diante disso, Tio Bento, famoso por sua truculência, sugeriu ao Sr. Pedro que desse o fim nos pombos! Indignada, Dona Clarice se opôs com veemência, sugerindo a convivência pacífica entre o homem e a natureza e que não deveríamos interferir naquilo que já estava feito. Tio Bento retrucou que gostava de animais, que os respeita, mas que não os tolera no mesmo local em que faz sua refeição. Ponderou ainda que o homem tem que se sobrepor aos animais e não ser refém da vontade dos mesmos, já que os racionais somos nós, humanos. Sugeriu ate que o Sr. Pedro os inserisse no cardápio, pois adorava carne de pombo. Parece frango, dizia ele.

Dona Clarice se enojou com a sugestão de Tio Bento, dizendo que jamais faria mal algum aos pombos, muito menos os comeria e que ele não passava de um ignorante e insensível. Deixou seu prato de leitoa e bisteca pela metade, pagou a conta e foi embora balbuciando.

Eis que chegou o dia da festa de São João e o restaurante estava lotado. As pessoas se divertiam, comiam, bebiam e dançavam a quadrilha. Certa hora, um grupo de senhores passou a soltar bombas e rojões, como tradição ao dia santo. A maioria dos presentes erguiam os braços e exaltavam o santo. Viva São João! Notou-se que alguns poucos fecharam seus rostos, com indignação. Alguns cães correram. Outros nem se deram conta. Os pombos voaram assustados. Um deles, não resistiu e ao que tudo indica, morreu em consequência do barulho dos fogos. Foi o que bastou.

Paulão, sujeito, alto, forte e costumeiramente sensato, também conhecido por ser defensor ferrenho dos animais e do meio ambiente, em um momento de cegueira e raiva, agarrou o primeiro banquinho de madeira que viu à sua frente e acertou na cabeça de um dos senhores que havia soltado o rojão! O Senhor Bendito, de 78 anos de idade, que soltou fogos a vida inteira no dia de São João, estava morto. Ele e o pombo.

Foi um alvoroço geral. Paulão, retomando sua consciência, chorava, pois nunca foi sua intenção matar uma pessoa! Mas ficou tão nervoso com a morte do pombo pelo “homem mau” que se descontrolou e cometeu uma atrocidade de verdade.

Comentários dos mais variados se ouviam, calorosos e cheios de raiva. Alguns extremistas chegaram a balbuciar que Paulão estava certo, até se referindo ao Sr. Benedito como velho inválido e que já ia tarde, dessa para melhor. Ninguém mandara desrespeitar os bichinhos. Outros, só não lincharam Paulão, pois o mesmo era muito forte e o Sr. Pedro atirou para cima com sua garrucha, ao mesmo tempo em que chegou o delegado e pôs fim a festa. Foi uma tragédia.

Com o tempo, os almoços no restaurante do Sr. Pedro passaram a ser mais sérios e silenciosos, com cada vez menos clientes. Mesmo assim, o público presente ainda era considerável, seja por interesse na comida, seja para alimentar a animosidade que só crescia. É isso mesmo. Dizia tio Olavo que o restaurante foi dividido imaginariamente. Agora, os que comem à sombra das árvores, são a favor dos pombos e os alimentam. Os que comem na varanda espantam os pombos e tem raiva de sua existência. As pessoas de um lado do restaurante passaram a odiar as do outro lado e vice-versa.

O restaurante virou um ambiente hostil, pasmem os senhores. Tio Bento e Dona Clarice sequer se sentavam mais na mesma mesa, como antes. A troca de ofensas entre as pessoas virou rotina. Pessoas amigas e ditas civilizadas faltavam se estapear quando o assunto eram os pombos.

O Sr. Pedro não era mais um homem feliz. Tinha que medir suas palavras para não parecer desrespeitar um ou outro. O vilarejo não era mais o mesmo. A discórdia prevalecia.

Inconformado, o Sr. Pedro tentava soluções para o caso. Consultava os seus clientes, autoridades, o delegado e até um índio. Todos davam suas opiniões, algumas sensatas, bem pensadas e que até poderiam dar certo. Outras sem fundamento, mas ainda sim eram suas opiniões e “ai de quem discordasse”! Viam-se muitas opiniões pessoais, impensadas, que eram mantidas a ferro e fogo, ainda que outros os convencessem estarem errados. Nenhuma solução prática. Nenhum consenso. Mais parecia que alimentar a discórdia e o caos era mais prazeroso do que resolver a questão e retomar a paz. Afinal, que graça tem a paz?

O Sr. Pedro queria resolver o problema, já que era dono do restaurante e queria ver os seus clientes conviverem harmoniosamente, sem prejuízo do bem estar dos animais. Mas que animais, perguntou ele a si mesmo. Os leitões, novilhas e frangos eram mortos todos os dias, para o deleite de todos, tanto para os que comem à sombra das árvores como para os que comiam na varanda. Todos os anos no vilarejo ainda se comemoravam o dia do carneiro no barracão da igreja, onde era servido banquete só de carneiros. Inclusive os pombos de seu restaurante eram alimentados por restos de carne de outros animaizinhos mortos para o almoço. Era um paradoxo.

Afinal, porque o “bem estar” dos pombos era exacerbadamente protegido, acima dos interesses dos humanos, enquanto a morte fria e violenta dos leitões, vacas, frangos e carneiros, abatidos diariamente, não?

O Sr. Pedro não compreendia o comportamento das pessoas.

Sugeriram que ele criasse um viveiro enorme para os pombos! Em pouco tempo ele juntou voluntários e o fizeram. Mas os pombos, selvagens, não queriam ficar presos, nem comer a comida do viveiro. Aprimoram o viveiro, mas não adiantou. Certamente, pombos não nasceram para viver em cativeiro. E qual animal nasceu?

Por fim, bolaram uma armadilha e conseguiram confinar todos os pombos no viveiro e os trancaram ali. O Sr. Pedro tinha que arcar com os alimentos dos pombos e com mais pessoas para limpeza diária do local, pois o cheiro de fezes era grande e totalmente incompatível com um restaurante. Vira e mexe tinha que contratar um veterinário, pois alguns adoeciam e se ele não demonstrasse compaixão, poderia perder a clientela.

Passou mais um tempo, e agora, surgem mais inconformados, pois alguns não concordam com o confinamento dos pombos, pobres coitados. Ao mesmo tempo, novos pombos chegavam ao local e eram alimentados imprudentemente por alguns, sem qualquer preocupação ou consciência sobre as consequências de seus atos, dado a todo esforço em contornar a situação. Não havia cooperação de todos.

O Sr. Pedro aumentou o preço de seus pratos, pois o seu prejuízo com os pombos, que nem eram seus, aumentou os custos. Mas ninguém concordou com os novos preços. Acharam um absurdo. Aliás, por mais que o Sr. Pedro se esforçasse, muito além de sua capacidade e possibilidade financeira, nunca estava bom. Ele ainda era julgado como culpado e omisso por alguns, pois aquilo, definitivamente, era um problema do Sr. Pedro e não de seus clientes, que não deviam pagar nem mais um centavo pela mesma comida, que também passou a ser questionada sobre sua atual qualidade.

Mas não era só esse o problema do Sr. Pedro.

Ele virou réu em processos judiciais, pois o alvará de seu restaurante não abrange a exploração de animais em cativeiro. Foi multado pela polícia ambiental e responde criminalmente por manter em cativeiro espécie protegida por lei. Alguns dos pombos eram de espécies raras! Ninguém se importou com o que acontecia com o Sr. Pedro. Não reconheceram seus esforços. Não tiveram pena dele.

Os pombos foram soltos. As discussões continuaram.

Certa tarde, em momento introspectivo, o Sr. Pedro disse para uma das cozinheiras: Dona Laura, o que mais me entristece é saber que o problema com os pombos não se resolve por dois motivos determinantes: um deles, é que as ideias e sugestões são incompatíveis com um restaurante e o meu poder aquisitivo e outro, talvez o mais importante, é que as ideias de um grupo, quando postas em prática, nunca são abraçadas pelas pessoas que pensam diferente, que simplesmente por não concordar, acabam por boicotar e agir contrariamente, até que suas ideias sejam postas em prática. Nunca apostam em uma ideia e tentam ver se dará certo, coletivamente.

O Sr. Pedro definitivamente não conseguiu agradar “gregos e troianos”. Pobre homem morreu de desgosto, meses depois. O restaurante foi fechado. Um morador das redondezas, rico, o assumiu, com promessas magníficas. Porém, o problema com os pombos nunca foi resolvido. O restaurante fechou depois de cinco meses. Ninguém mais se interessou em sucedê-lo no negócio. O silêncio agora impera. Não há mais barulho. Ninguém mais fala em pombos e as pessoas sequer sabem se estão bem.

Mas eles estavam. Não demorou e migraram para uma padaria do vilarejo e o padeiro, passou pelos mesmos problemas do Sr. Pedro.

Apesar de não ser contra os bichinhos, o padeiro não poderia permitir que tais animais estivessem presentes em um ambiente no qual ele faz pão para o consumo humano. A prioridade era a higiene e o ser humano.

Porém, inacreditavelmente, ainda havia opiniões para que o padeiro convivesse harmoniosamente com os pombos e novamente, que o padeiro lhes garantisse comida. Do contrário, seria uma atrocidade, pois deixar de alimentar os pombos, que ali chegaram divinamente em busca de alimento, certamente faria que estes adoecessem e morressem de fome.

Muitos, obviamente, discordavam, pois na eventual falta de comida, como sempre, os pombos voariam para outro lugar. Afinal, pombos nunca dependeram do homem para comer, viver, reproduzir e morrer.

Outros custavam a acreditar que de fato aquilo estava acontecendo com o pobre padeiro e se enojavam com as discussões vazias e até onde a animosidade chegava.

O poder público e as secretarias não se intrometiam. A população, dividida, preferia trocar ofensas, sugerir soluções mágicas, impensadas e inviáveis, totalmente contrárias à realidade e ao objetivo de uma padaria, que quase teve que virar uma casa de pássaros adaptada, para agradar alguns.

Como tudo aquilo era inviável, surreal e fugia do poder do padeiro, que não tinha ajuda das autoridades e também não podia contar com o bom senso da população, ele se lembrou do triste fim do Sr. Pedro e fechou a padaria.

Sem alimento fácil, os pombos migraram novamente. Alguns permaneceram na cidade, na esperança de serem acolhidos por Dona Clarice, Paulão ou alguns “amigos” que fizeram no restaurante do Sr. Pedro. Isso não aconteceu.

Dona Clarice virou avó e seu neto ficava aos seus cuidados, em sua casa, de modo que ela achou arriscado o pequenino conviver com pombos e pegar alguma doença. Tocou os pobrezinhos de lá.

Paulão cumpria sua pena na cadeia e sua esposa não permitiu a entrada de pombos em sua casa, pois faria muita sujeira e ela não teria tempo de limpar e cuidar dos bichinhos.

Logo, os pombos remanescentes foram obrigados a voltar a caçar e a seguir os seus instintos animais - que judiação!

As pessoas do vilarejo ficaram sem restaurante, sem pão, criaram inimizades e rancores que parecem irreversíveis. Não há mais festejos.

Teve até político eleito por defender os pombos e propor mudanças na lei ambiental, porém, tão logo eleito, pendeu para o grupo da situação, foi alvo de uma investigação parlamentar e quase não se ouve falar do mesmo ou de seus feitos.

Houve revolta e com o passar do tempo, tio Olavo me jurou que os pombos criaram seu próprio partido político e posteriormente, um auxílio-pombo!

Disse até que um grupo de pombos abriu um restaurante em um povoado perto dali, conseguiram alguns humanos para cozinhar para eles voluntariamente, e alguns outros humanos ficaram de prato principal.

Mas isso eu já não sei se acredito no tio Olavo.

Em algumas coisas, porém, eu acredito. Na capacidade, no bom senso e na busca organizada pelo bem comum, tão explícita no comportamento dos pombos!

m_gross
Enviado por m_gross em 17/03/2018
Reeditado em 19/03/2018
Código do texto: T6282654
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