Passado Atordoado

Abro os olhos, tudo ainda fica nublado, não sei direito onde estou. Estou deitado em minha cama, a mesma cama que comprei com minha esposa há sessenta anos. Uma cama bem simples, pequena. Estou com a coberta sobre o meu corpo, não quero sair da cama, o frio impede que eu saia. Que horas são? Alguém pode me informar que horas são, por favor? Não há ninguém no quarto. Não há ninguém ao meu redor.

A cidade de Espírito Velha está começando a acordar. Suponho que deve ser bem cedo ainda, preciso levantar, mas esse frio que faz no sul do Brasil é devastador, impede que eu saia da cama. Estou bem aqui na cama. Por que preciso sair? Que horas são? O relógio sobre o móvel em frente à cama me mostra que são seis e dez da manhã. Não preciso sair da cama. Tudo que tinha para fazer fora da cama, eu já fiz. Hoje estou velho, ninguém se importa comigo, tudo que eu já tinha que fazer, eu já fiz. Por que sair da cama?

Abro a gaveta ao lado da cama, cheia de papéis avulsos, lápis, canetas, umas cartas que escrevi e não enviei a ninguém, poemas escritos nas horas perdidas durante os meus dias, frases perdidas, sem saber o que estão fazendo. Há um caderno, um livro que havia começado a escrever há décadas, mas que nunca mais ousei em continuar. Por que nunca ousei em continuar? Não sei, não quero saber, não quero sair da cama, esse frio impede que eu saia.

No móvel ao lado, havia um porta retrato. Nessa fotografia, encontrava-se um homem barbudo e eu. Essa foto já faz mais de 50 anos, nunca mais ouvi notícias desse nome. Álvaro Mendes era de uma família muito simples, tinha vindo da Europa ainda criança num navio junto com seus familiares. Nessa viagem, me lembro bem, de Álvaro me contando, foi terrível, foram quase trinta dias de terror e eles não viam a hora de chegar no país maravilhoso que era o Brasil. O que eles iam fazer no Brasil? Nem eles sabiam, só sabiam que tinham que sair da Europa, a guerra devastava, a fome matava um por um na aldeia em que vivia. No Brasil, pensavam, há comida em abundância, não há guerra, é o país maravilhoso.

Ainda há alguém me escutando? Que horas são, por favor? São seis e cinquenta e cinco. Por que tenho a fotografia minha com Álvaro Mendes ao lado da cama? Remonta-me a tempos difíceis aqui em Espírito Velha. Não tenho fotografias de meus familiares, mas Álvaro Mendes, me faz lembrar da vida sofrida que vivíamos, me lembro bem que no jantar tínhamos que dividir a comida, pois não tinha para papai, mamãe e seus cinco filhos. Mas não quero falar da minha vida.

Acordei, não sabia direito onde estava. Os objetos ao meu redor me fazem lembrar do passado. Esse frio impede que eu saia da cama. Espírito Velha já deve estar todo mundo trabalhando. Afinal, que horas são? São sete e quarenta e cinco. Por que não quero sair da cama? Esse frio impede que eu saia.

RenatoGarcia
Enviado por RenatoGarcia em 17/04/2018
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