A boiada avança gerais  afora.

Perto do cemitério, bateu ventania forte. Redemoinho,  do nada. Poeira subiu. Lavou peões  com o pó da estrada. Ninguém via nada. Só o tropel dos cascos. A boiada é que guiava. Xandão voltou meia légua, mas não achou nem rastro. Corisco deve ter fugido pegando a barriga da serra.  Lampião quis fazer o mesmo e ficou machucado.

Corisco debandou.  Não teve jeito. Se caiu na voçoroca, já é morto. Na voçoroca do meio, já morreu muito vivente. Tem  arma de caçador lá dentro, e ossada de bicho. Três vaqueiros desapareceram. Onça vai comer Corisco. E se ele cair na voçoroca fica ainda mais fácil para a onça. Dizem que caçador segue a caça, e quando cuida, já despencou pra dentro. Tem muita água. Ninguém vê o fundo.

— Deve ter caça no grotão da voçoroca.
— Tem caça e tem onça. Onde tem presa tem predador.
—  Não quero passar nem perto.
 Homem que é homem tem medo de onça não. Onça é que tem que ter medo de homem!...
— Prosa besta é esta? Quando toco boiada só quero ouvir conversa de boi — disse Nhô Velho.

Turíbio olhou atravessado. Dino e Capistrano pensaram o mesmo: ‘Nhô bateu na cangalha pra o burro entender’. Não viam nada errado em conversar. Boi sabe andar sozinho.
Tunico Oliveira adiantou meio quarto de légua. Precisava abrir a cancela e bloquear o mata-burro.
A boiada chega berrando. Parece se lembrando das coisas de Campo Grande. A pastagem recuperada. Imensa. Brotada de novo.

Meio baiano, meio mineiro, Justino Batista Constant Generoso não espera que o galo cante e levante outro galo o canto noutro terreiro. O poeta e  fazendeiro começa sua  história  onde termina a lenda ou termina a lenda onde começa sua história. Ele viveu quarenta anos em Minas. E com o mineiro, aprendeu a ser prudente, e manso. Desconfiado, no entanto. Calado, esperto. Cauteloso. Mineiro é sossegado. Vai comendo devagar o  mingau quente pelas beiradas. Pelas estradas da vida, tudo passa devagar. O trem, a cidade, a multidão de mineiros.

A boiada, em fila, passa a cancela de acesso às mangas. Levanta poeira e o cheiro de suor de gado resplandece. Cheiro gostoso que a grada o nariz do vaqueiro, e muito mais ainda, do fazendeiro.
— Tarde patrão!...
— Como foi a  marcha até aqui? — disse Generoso olhando o gado se dispersando na manga.
— Perdemos um boi!
— Qual?
— Corisco. Saiu tirando fogo de pedra com os cascos. Ligeiro que nem um raio. Xandão foi capaz. Quase. Lampião tá machucado.
— Amanhã pesaremos a boiada na cidade. Corisco depois vem no cabresto, salgar brasa de angico.
— E Lampião?
— Vou chamar o açougueiro.
— Né por nada não, patrão. Tem cigano arranchado aqui perto.
— Em minhas terras?
— Quase que quase. Parte dentro, parte fora. Bem na divisa.
— Pois mande  Turíbio Soberbo, Pururuca,  e João Velho com meu recado à ciganada. Se quiser ir, também pode. Senão, descanse.
— É de meu gosto. Vou.
— Pois dê meia-hora pra cigano arribar. Prometa fogo. E faça. Faça fogo cinco minutos depois do prazo. Só não atinja mulher e menino. A pesagem do gado fica pra depois.
***
Adalberto Lima, trecho de "Estrela que o vento soprou."
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