OS SAPATOS (Um causo)

Dois amigos, duas namoradas. O causo deu-se numa pequena localidade do litoral leste cearense, hoje, município.

As moçoilas, cedo da noite, frequentavam a localidade, por dois motivos: um, religioso. À noitinha, às 18 horas, o sino da igreja badalava a ave-maria, hora da reza do terço.

Todas elas, contritas, de véu na cabeça, ajoelhavam-se e dedilhavam o terço. Após a reza, voltinhas pela calçada da igreja. Momento de se cruzar com os pretensos namorados.

As jovens residiam em povoado próximo à sede da cidadezinha. Os pais as liberavam para a reza do terço.

Mas o motivo maior do passeio era o flerte. Na época, não era paquera, nem ficar. Elas de olho naqueles dois jovens. E estes, por sua vez, de olho nas duas.

Naquele tempo, a aproximação entre dois sexos não se dava de chofre. Primeiro, um olhar cobiçador; uma boa noite; um aperto de mão. Este último, um poquinho mais demorado, significava consentimento. Ao redor da igreja ou na pequena praça, eles passeavam de mãos dadas. Em seguida, em outro momento, mão no ombro. Aí já era uma atitude mais íntima. Para o primeiro beijo, um tantinho de tempo.

Mas o causo foi o seguinte: os dois casais, já de namoro confirmado, determinada noite, com o consentimento das meninas, se prontificaram a acompanhá-las até suas residências, distante alguns poucos quilômetros do povoado.

A única luz a iluminar o caminho era a das estrelas. Mas por pouco tempo. De repente, um temporal. Os quatro seguiam em fila indiana, bem distante um do outro. Só Deus sabia o que se passava naquela mão no ombro. E o temporal arrochou. Os dois jovens combinaram o seguinte:

- Deixemos nossos sapatos debaixo desta moita de cipó, e vamos descalços até à casa das meninas.

Chegaram lá todo ensopados. Os pais até ofereceram dormida. Rejeitaram por um motivo: os sapatos.

Serenada a chuva, despediram-se das namoradas. O céu, choroso, de quando em vez, mostrava algumas estrelas. Apressaram o passo e riam da aventura.

- A gente todo ensopado, qual será a reação de nossos pais? Vão nos chamar de abestados. E o outro:

- Mas tu gostaste do aperto de mão, de teu corpo colado ao da mina.

Chegaram à moita de cipó. Procuraram, procuraram. Revistaram tudo e nada de sapatos. A enxurrada foi intensa. Combinaram o seguinte:

- Amanhã, cedinho, viremos aqui, à luz do dia, com certeza encontraremos nossos pisantes.

Na manhã seguinte, sob sol nascente, vasculharam a moita. Nada de sapatos. De repente, um deles gritou:

- Olha para aquela pequena lagoa. Você vê o que vejo?

Caíram na gargalhada. Os dois pares de sapatos boiavam a céu aberto. Em cima de um deles, pousa linda seriema que, ao voar, deixou cravado no couro do sapato seu carimbo.

Raimundo de Assis Holanda Holanda
Enviado por Raimundo de Assis Holanda Holanda em 20/05/2018
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