DIREITO AO AMOR

Roberval era homossexual. Tinha tido suas épocas de noitadas com os amigos, muito próximos, em bares, boates. Tempo bom era aquele em que ele possuía amigos, e eles de fato acreditavam se apoiar uns nos outros, quando precisavam desabafar algum conflito em casa, a rejeição de alguns pais. Bruno tinha sido expulso de casa e fora morar com o namorado Alexander. Foram felizes por dois anos, até que o próprio Bruno o traiu com Márcio. Agora, pelo que sabia bem, Bruno estava como ele, solitário, morando na casa dos pais que o acolheram de volta, quando, apiedados, entendendo, cedendo, viram o estado de desolamento do rapaz. Pois, para os pais de Bruno, assim como para os dele, ‘aquilo’ era “abominação”, “safadeza”, “coisa de homem de mau caráter”. Custaram a entender, com a vida, a profundidade daquilo. De que, se não era bem uma “opção”, se nascia assim, era um estado biológico, natural --- da alma...

Ele tinha ainda alguns amigos que visitavam-no para um jantar eventual, uma vida so-cial menos intensa. Roberval dizia: “Virei uma bicha velha e cansada!”, ao que todos se riam muito de seus comentários espontâneos, bem-humorados, diretos. Nessas noites bebiam muito, uísque, cerveja, licores, até que cada um, dentre eles apenas um casal, se cansassem e fossem dormir. E como Roberval queria dormir, e muito!

Pois havia se apaixonado há alguns anos quando pouco mais moço e havia sido corres-pondido. Mas a insegurança e o ciúme dele afastaram definitivamente o pretendente Moacir. Até hoje lembrava-se saudoso dele, e por vezes chorava, chorava em segredo na cama um cho-ro no qual não saía nenhuma lágrima, até que pegasse no sono.

Tivera também outros amores, alguns traídos, outros que o traíram, que o fizeram sofrer também, de modo que, após um tempo, cansado, desistiu de tentar encontrar alguém que lhe fosse fiel e que nele despertasse real interesse. Após suas experiências encontrava-se embotado, anestesiara o coração por medo de sofrer mais alguma vez.

Mas ainda havia tempo, aos quarenta e tantos também se ama, e mesmo se não desse, se chegasse ao limite de sua exaustão e de sua dor, não sofreria mais. Foi assim que, numa noite, mais uma vez sozinho em seu bem decorado e limpo lar, deixou de lado o copo de uísque. Algo se agitou dentro dele convulsionado. Chorou então, chorou tanto que achava que os vizinhos fossem escutar seus gemidos de dor. E desta vez saíram-lhe muitas lágrimas. Seu coração, tão regelado, tão endurecido e posto lá para trás no peito, se crestava e fluía a esperança de vida, como a purulência salutar de uma ferida. Após dois dias de repouso, como se estivesse doente, ausente de tudo, lavada a chaga, porém continuando em seu trabalho numa loja de roupas de grife, pelo qual não era lá bem remunerado, mas que lhe permitia sobreviver, o músculo cardíaco amoleceu novamente, ternamente.

Só que esse amor já não era por homem ou mulher alguma!, descobriria tempos mais tarde. Era um amor por ele mesmo, talvez. E já não dava o tamanho valor que dera em relacio-nar-se afetivamente com alguém, passados os meses, as mágoas, vindo o perdão ao mundo, à vida. E mesmo que não lhe tocasse ser seguidor de nenhuma religião, destas institucionaliza-das, passou a ler e a estudar muito as coisas do espírito, de forma suave, sem sentimentos in-culcados na sociedade de culpa, medo e preconceitos. Passou a sentir um amor, não sabia mais exatamente por que, quiçá, mais geral, abrangente, por algo maior do que ele mesmo, tinha de ser, pois Roberval a ele mesmo não se bastava, não se bastaria nunca mais. Solto, como se aos poucos ganhasse um mundo, pequeno, limitado --- pensou divertido um dia, lembrando-se do passado, surpreso por sua melhora, rindo-se...

E, de passagem, somente uma passagem, algum choro ainda rolaria, mas sem grandes complexidades. Soltava os freios, as amarras. Se viesse o tal homem, viria, se não viesse, tudo bem também. Nessas horas pensava em seus amigos e em como poderia ofertar-lhes um pouco de sua extraordinária, inacreditável consolação. E assim fez, não forçosamente, ao que alguns, menos acordados, não puderam-no compreender. Debocharam, disseram-lhe que ‘enlouquecera de vez’. Mas os verdadeiros amigos, os que valiam a pena que restassem, como é na vida, diziam que Roberval aprendera uma coisa muito valorosa e que não perderia jamais em sua jornada: aprendera a “grande aceitação”, aprendera o que significava “soltar o cabresto”, “dei-xar ir, deixar a vida fluir”, o que se dá por vezes quanto maior é a privação e a prova, “sendo que se tem o que se precisa e não o que se quer, o que é melhor para si, etc...” Roberval sentia-se querido na companhia de tais amigos, e realmente mais liberto, feliz até...

Por vezes ainda reclamava sua solidão, a sua carência absolutamente legítima, justa, verdadeira. Mas, passadas algumas semanas, não era que Edson lhe telefonava mais uma vez? Ah, por ele, tão digno e belo, tão decente que era, não havia como recusar!

Fernando Munhoz
Enviado por Fernando Munhoz em 19/07/2018
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