O VELHO DO SACO.

Mariane estava contrariada. A professora escolhera preconceito como tema da redação. -" Vai valer nota! Podem fazer teatro ou trazer alguém pra dar testemunho!!!" O sinal do intervalo ecoou. Mariane se juntou as suas amigas Michele e Denise. -" Tema chato!! Preconceito! Tanto tema mais interessante, tipo Justin Bieber, a moda dos astros do funk, a capa do disco novo da Pink..." Michele e Denise concordaram. Ao fim das aulas, elas passaram pela praça central. Dezenas de alunos juvenis, mochilas nas costas e gritos. Dez garotos partiram para cima delas. -"O velho do saco está aqui. Corram!!! Gritou um menino. Mariane sabia dessa lenda. O velho do saco pegava as crianças desobedientes, colocava-as no saco e levava pra fazer manteiga e sabão. Nos seus onze anos, achava essa lenda uma forma de assustar os pequenos. Era mocinha agora. Pré-adolescente, mas aquele velho barbudo metia medo. Deu um beijo nas amigas e entrou em sua casa. -" Tchau, amigas!!!" O vento frio. Temperatura baixa. Morava com a mãe e a avó. Casa alugada. O pai morrera há um ano. Sopa de novo. Jantou e foi fazer a tarefa escolar. A mãe, Edinalva, costurava. Esperava a aposentadoria que nunca chegava. Estava precisando de novos óculos e nova cirurgia na coluna. Fazia faxinas pra ajudar no orçamento. Quem mantinha a casa era a aposentadoria de dona Fátima, avó de Mariane. -" Viva!! Achei meio quilo de farinha na despensa! Teremos bolinho de chuva!!! Trovões anunciavam a chuva iminente. Mariane fez careta. -" Uhhh!! Que felicidade por achar farinha!! Vai subir o dólar!!!" A televisão queimara há semanas. O radinho de pilha estava ligado. A chuva caiu. Melhor dormir, pensou a menina. Batidas na porta. Edinalva e Fátima se olharam. Sem dinheiro pra comprar um cadeado, o portão vivia encostado. Edinalva abriu a porta. Ela se assustou. Um senhor idoso, todo molhado e tremendo de frio. -" Me ajude!!!" Edinalva o colocou pra dentro. - " Esse homem está tremendo muito!! Disse Fátima, dando-lhe uma toalha. -" Grato, senhora!!!' O velho tirou o capuz. Mariane surtou. -" Mãããããããee!!!! Esse é o velho do saco!!!!" A matriarca a abraçou. -"Isso é lenda, filha. Vejo um senhor idoso que necessita de abrigo!" O velho foi conduzido ao banheiro. Tomou um banho quente e vestiu roupas do falecido marido de Edinalva. -" Um prato de sopa quente lhe fará muito bem!!!" O velho sorriu. Mariane previa ser motivo de chacotas na escola. Fechou o semblante. Edinalva mediu a temperatura do senhor. Sem febre. A chuva aumentara. -" Eu fui pego pela chuva!! Me perdoem se sou importuno!!!" Edinalva sorriu. -" Vai dormir aqui, meu amigo!!! Cedo, vai pra sua casa!!!" A avó de Mariane serviu-lhe chocolate e bolinhos de chuva. -" Quanto tempo não comia isso! Que deus as abençoe!!!" Mariane sorriu. -"Amém, velho do saco! Tranque a porta do quarto dele, mamãe!!!" Edinalva olhou feio pra filha. Dona Fátima colocou seus óculos e se aproximou do homem. -" Meu Deus, poderoso! Senhor Raimundo!!!" O velho sorriu. -" Fui reconhecido!! Meu nome é esse!!' Edinalva olhou pra sogra, sem nada entender. -" Esse homem é Raimundo Jorge de Silveira, dono da tecelagem Silveira, onde meu marido, o saudoso Joaquim, trabalhou por 27 anos!!!" A mulher foi até ele e o abraçou. -"Senhor Raimundo! Ainda vivo!!!!" Mariane mudou o semblante. -" Joaquim, meu primeiro empregado. Homem bom, honesto e trabalhador. Tive 300 empregados, digo, amigos. Os tecidos chineses e as taxas fizeram a tecelagem falir." O velho bebeu o chocolate. Edinalva, Fátima e Mariane estavam agora junto dele na mesa. A conversa ficara interessante. -" Soube que sua esposa faleceu!!! Meus sentimentos, senhor Raimundo!" O velho fez o sinal da cruz. -" Sim. Penha se foi há treze anos. Meus dois filhos vivem na Europa desde os anos 90. Me enviam uma mesada. Doei a mansão pra uma entidade." Edinalva teve pena dele. Mariane idem. - " Muito feio ficar pelas praças com aquele saco, assustando todo mundo!!! O velho sorriu ante a frase da menina. - " O saco está aqui. Vou mostrar pra vc, menina!!!" Raimundo se levantou e pegou o saco que ficara a beira da porta. Mariane olhou pra dentro dele, curiosa. -" Cacos de vidro!!! Garrafas quebradas!!!" Raimundo fechou o saco. -" Muito perigoso. Minha esposa se cortou, acidentalmente, com um caco de vidro, numa pracinha. Levei-a aos Estados Unidos mas foi em vão! Ela morreu! Vivo procurando e recolhendo cacos para que outras pessoas não se cortem!!!" Mariane o abraçou. -"Perdoe-me por ter lhe chamado de velho do saco!!!" Edinalva e a sogra choravam. Eles rezaram um pai-nosso juntos e foram dormir. Mariane sonhou que se tornava médica e auxiliava as pessoas pobres! O dia amanheceu lindo. Raimundo tomou café com eles. -" Grato, amigas. Vou embora!!!" Mariane colocou as mãos juntas. -" O senhor poderia ir na minha escola pois tenho que levar uma pessoa pra falar sobre preconceito!!! Sua história é linda!! Por favor!!! O velho sorriu. -"Eu irei!!" Mariane estava ansiosa. Os alunos ficaram com medo de ver aquele senhor aguardando no corredor. Chegara a hora. -" Vai levar bomba, Mari!!! Sem redação!!!!" Disse-lhe Michele. A professora chegou perto dela. -" Eu trouxe uma pessoa pra contar sua vida, um testemunho belo!!!" Mariane chamou Raimundo. O riso foi geral. Apontavam Mariane e davam gargalhadas. A professora pediu para se calarem. Mariane introduziu. Raimundo contou sua vida durante dez minutos. Aplausos sucederam lágrimas. Mariane tirou nota dez. A professora convocou a imprensa e contou-lhes a história de Raimundo. O homem ficou conhecido no Brasil todo. Ganhou medalhas de honra ao mérito do prefeito. Dezenas de pessoas iniciaram campanhas de limpeza da cidade. Raimundo cortou a barba e comprou roupas novas. Chegou, certo dia, com uma televisão nova pra Mariane e um ramalhete de rosas vermelhas pra dona Fátima. Ela corou. Iniciaram um namoro. O casal frequentava um grupo da melhor idade. Adoravam dançar e viajar. Eles se casaram. Raimundo pediu uma casa simples aos filhos. Cosme e Damiana gostaram de Mariane de imediato. adeus aluguel. Mariane tinha seu próprio quarto, todo rosa. Raimundo fez crescer na menina o gosto pela leitura, séries policiais e jogos de xadrez. Passavam horas contando histórias, deixando dona Fátima de escanteio, até!!! Ele custeou os estudos de Mariane. Ela se formou em medicina. Mariane fez o discurso de formatura e contou a vida de Raimundo. Chamou-o ao palco e o aplaudiu. O velho do saco tinha tanto valor, um anjo em sua vida e na de sua família, na vida daqueles que zombavam dele, sem conhecer a sua verdadeira face... Aprendeu que preconceito é ter um pré conceito. Fazer um julgamento antecipado. (FIM)

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 13/09/2018
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