Mir Vorov: Diário de Alexei

2 de outubro

Ainda sinto o gosto do sangue na boca. E a mesma seiva bruta ainda escorrer pelas minhas mãos. Esta é a fiel história do meu martírio. De um tempo vindouro, quando eu ainda era um moscovita radiante e um eterno soviete da mãe Rússia. E não um detento hostil, enjaulado de forma mais rude que um Leão selvagem. Aconteceu que numa primavera de anos atrás, meu primeiro flerte com o crime me trouxe para a mais severa experiência de meus 34 anos.

Eu morava no distrito de Gagarinsky. Moscou era uma cidade bela para mim. Exceto no inverno. O inverno era o tempo de irmos para as datchas, mas este foi um período curto da minha vida. Como adulto, nunca faltei com as minhas obrigações ao meu país. Lembro-me até hoje que desejei servir ao exército. Mas aquilo não era pra mim. Aos 18 anos anos, não aguentava tamanha brutalidade que era exigida a um militar. Atestei isso quando vi o FSB prender um traficante em meu bairro. Bastou um chute em seu estômago e um empurrão pelas costas para que ele estivesse sob o domínio deles. Claro que judiaram um pouco mais do homem quando caído. Não era para mim uma cena de horror, mas sim uma cena de impacto. Minhas pelejas porém, nunca foram muitas. A mais séria delas, quando eu tinha por volta dos 16 anos. Troquei socos com um garoto ás margens do rio Moscou e fomos detidos pelos guardas. Por pouco não o joguei no rio para que ele fizesse um passeio turístico por toda a cidade.

Certa feita porém, envolvi-me numa pugna que me marcou para sempre. Não sabia até então, o que o veneno do ódio era capaz de fazer. Voltava de uma festa que havia durado boa parte da noite. Caminhando de forma meio bamba pelos arredores de Gagarinsky, eu sentei-me na pequena escadaria de uma casa. Aquela altura, eu já estava ébrio, e passados alguns minutos, dois homens que estavam em frente da casa vizinha começaram e me chamar.

- Careca. Ei, careca. - dizia o homem assobiando para mim.

Eu revirei os olhos e inclinei a cabeça bem devagar olhando pra ele. Neste momento, ele me perguntava se eu tinha isqueiro. Eu não me importei com o que ele queria, e sim da forma que havia me chamado.

- Meu nome não é careca. Meu nome é Alexei. Suka! - assim lhe respondi, dando ênfase na última palavra.

Ele entendera o xingamento e levantou-se mexendo os braços de forma muito enraivecida. Enquanto eu permanecia sentado segurando minha garrafa de vodka, que ainda estava nas últimas doses. Apesar de o seu colega encorajá-lo a entrar para dentro da casa, o homem se fazia cada vez mais bravo. Mostrava os punhos para mim, esperando que eu desse o primeiro soco. Depois de um curto período, o homem pôs a jaqueta e se convenceu a entrar para dentro da casa. Ali, o sol já estava raiando. O colega deu o primeiro passo depois da porta, e eu lhe sussurrei novamente "suka" enquanto ele subia os pequenos degraus para entrar. Num impulso, tremendo, ele desceu o degrau e voou em minha direção como uma tigresa para devorar a sua caça. Fiz-me hábil o suficiente no momento para levantar-me e quebrar a garrafa em sua cabeça. Aquilo o levou ao chão no mesmo momento e o deixou desacordado, fazendo da calçada cinza, uma piscina rubra. O seu colega gritava pelo seu nome no momento do golpe, era algo como Misha. Ele também tentou vir para cima de mim, mas rolamo-nos pelo chão umas duas vezes até que eu o fizesse sofrer um traumatismo no crânio. Quando dei por mim, minha mão estava totalmente ensaguentada. Pingando gotas de sangue sob o meu casaco.

Apesar da languidez, fiz o possível e levei ambos para a minha casa nas proximidades. Um de cada vez. E quando os coloquei sob o porão, pude perceber que seus corações haviam batido pela última vez. No primeiro, a perca de sangue causou o óbito. No segundo, o traumatismo o levou a morte instantânea. Não pensei o bastante. Arrastei ambos para o banheiro e tirei as roupas deles. Decidi não dormir naquele domingo. Já eram quase 7:00, e eu ainda tinha dois corpos na minha banheira os quais eu havia ceifado a vida. Então, peguei uma faca de cozinha. Daquelas pontiagudas e de aço. Comecei a cortá-los. Decidi começar pela cabeça, que espichou um sangue tremendo por toda a banheira. Depois lhes tirei os braços e as pernas. Desmembrando-os pouco a pouco, me surgiu uma fome tamanha. Nada havia comido durante a noitada e então pensei em experimentar aquelas carnes que estavam com o perfeito estado do sangue. Comecei então a cortar-lhes um pedaço da coxa, tirando a pele. A carne encheu a panela sob o fogão. Eu os cozinhei sem pensar duas vezes. Coloquei sob um prato de porcelana para experimentar a minha nova iguaria. Mas aquele gosto não me apeteceu. Então, retornei ao banheiro e cortei outro pedaço para fritar na frigideira. Este pedaço sim estava mais aceitável. Também o dera, fiz mal-passado.

Então o relógio já marcava o meio-dia e eu ainda não havia dormido. Congelei boa parte da carne, livrei-me dos vestígios no banheiro e recebi meu amigo Artyom para uma visita. Ele almoçou comigo saboreando a carne dos rapazes como se fosse aquela a mais suculenta que ele já havia provado. Aproveitei para lhe presentear com alguns pedaços de carne para que ele levasse para a família. Artyom me ligou a noite dizendo que sua esposa havia feito alguns bolinhos de carne com aqueles pedaços e que haviam ficado fabulosos. Até mesmo seus filhos haviam gostado. Eu lhe havia dito que era carne de canguru, mesmo sabendo que não temos cangurus pelo nosso país. Ainda assim, proporcionei aos filhos de Artyom algo que eles não teriam tão cedo. Os prazeres da carne. Saborearam a carne humana em sua forma mais pura possível. Sem a embriaguez da luxúria ou os olhares da lascívia.

A minha sorte não foi das maiores. Hoje quando escrevo este documento em meu cubículo, vejo que as coisas só mudaram para quem tem ótica. Se antes vivia em casa de forma solitária, agora estou numa solidão á dois da minha cela no Golfinho Negro. Se outrora vivia rodeado da escuma suburbana de Moscou, que não compartilhava de minhas frustrações, agora estou enclausurado junto de alguém tão criminoso quanto eu. Aqui, todos temos tatuagens. As cúpulas que fiz sob o tórax outro dia, hoje revela a minha identidade ao invés de documentos. E se antes, pela manhã ou pela tarde, quem á minha porta pronunciava "Ei Alexei Nikoalevich" eram os meus vizinhos. Hoje á minha porta estão os guardas do Golfinho acompanhados de seus cães sedentos também pela matéria humana. Estes homens não demoraram a prender-me. Puderam ver e constatar o que fiz logo no começo daquele semana primaveril. Com uma sentença em mão e uma chave em outra, fui condenado a ficar trancafiado pelo restante das décadas. Até o momento em que eu possa findar-me, assim como findei com os dois homens naquele dia de domingo. E se em um domingo passado, eu tinha a minha geladeira farta de carne humana, agora a dieta a qual estou condenado, é a do pão e da sopa.