AÇÃO NOTARIAL

Theophilo de Alvarenga esteve à frente do Cartório de Notas da comarca por mais de cinquenta anos.

Casou-se ainda bem novo com dona Angélica, filha única de fazendeiro dono de muitas terras e cabeças de gado, mas não foi isso que fez com ele ficasse podre de rico não.

As escrituras que ele fazia eram verificadas junto com o agrimensor da prefeitura para que não restassem dúvidas quanto aos tamanhos dos terrenos e suas fronteiras e, vez por outra, o pagamento desses serviços eram feitos com bons pedaços de terra que além de serem muito bem escrituradas recebiam marcos de concreto com as iniciais TA entre dois ramos de café.

Amigo de todos nunca teve dificuldade em tornar seus domínios contínuos, porque com a maior facilidade convencia aos proprietários de terras seus vizinhos nas trocas de terreno tal por terreno qual a fim de evitar a descontinuidade das propriedades, além de comprar a preço de banana madura as propriedades em débito com o fisco.

Dos três filhos, dois mudaram-se para a capital, o outro para um país estrangeiro e nunca mais deram as caras mesmo quando a dona Angélica morreu.

Leôncio Meira era filho de Monsenhor Ernesto, mas isso, apesar de ser comentado à boca miúda, nunca foi revelado porque a mãe dele, que sempre foi barata de igreja, nunca disse a ninguém quem era o verdadeiro pai.

No mesmo ano em que terminou o curso de contabilidade no colégio das freiras, Leôncio foi contratado pelo notário e com bem pouco tempo ficou encarregado de escriturar aqueles livrões que todo cartório tem, por ter a letra bonita e o traço firme.

Os anos se passaram, seu Theophilo ficou viúvo, alugou a casa da cidade para a prefeitura instalar o posto de saúde, mudou-se para uma das suas fazendas e comprou um jipe para Leôncio, diariamente, ir buscá-lo logo cedo da fazenda para o cartório e perto das quatro da tarde, leva-lo do cartório para a fazenda.

Depois do desfile dos colégios e das bandas de música em comemoração ao sete de setembro, quando descia do palanque aonde estivera cercado pelas mais altas autoridades do município, seu Theophilo, perdeu o equilíbrio e caiu lá de cima da escada batendo a cabeça com toda força nas pedras do meio fio e ali mesmo, antes que se pudesse acudir morreu nos braços de Leôncio que foi o primeiro a chegar perto.

Os filhos do notário, como sempre, não apareceram para o sepultamento.

Passados os três dias de luto o cartório foi reaberto e Leôncio avisou aos demais funcionários que iria no foro entregar uma correspondência de seu Theophilo para o juiz.

Voltou em pouco tempo e continuou trabalhando como sempre.

Depois do almoço, chegaram o juiz e um oficial de justiça e na presença de todos, entregou a Leôncio o envelope contendo o segredo e mandou que ele abrisse o cofre.

Duas ou três barrinhas de ouro maciço, as escrituras das propriedades e entre as páginas do velho álbum de fotografias um envelope de papel pardo lacrado com a chancela do cartório impressa em alto relevo onde estava escrito – meu testamento, para ser aberto pelo meritíssimo juiz após a minha morte.

Na primeira folha de papel pautado, datado vinte e tantos anos atrás, estava escrito o reconhecimento de paternidade de Leôncio Meira e na segunda, com data posterior ao falecimento de dona Angélica, a descrição de todos os bens do falecido casal e a nomeação de Leôncio como seu herdeiro universal, inclusive do cartório de notas, deixando os três outros filhos fora da herança.

A notícia se espalhou rapidamente e todos da cidade acharam acertadíssima e linda a atitude do seu Theophilo, principalmente quando ele, no final do documento pedia perdão ao filho bastardo por sua falta de coragem de assumir a paternidade em vida e que, pelo amor de deus, acrescentasse o sobrenome “de Alvarenga” em sua certidão de nascimento.

O que ninguém sabia, entretanto, é que Leôncio, o escriturário dedicado e amigo fiel do velho tabelião, em todos os anos em que esteve trabalhando como escriturário, conhecia o segredo do cofre, treinou e aprendeu a falsificar com perfeição irrepreensível a forma de escrever e principalmente a assinatura do seu Theophilo e que, numa das solitárias madrugadas em que o cartório esteve fechado, entrou pela porta dos fundos e colocou o envelope entre as páginas do velho álbum de fotografias, meio escondido entre as escrituras das propriedades e dos demais papéis de interesse restrito do cartório.

Nessa época a lei que proíbe a exclusão de herdeiros ainda não estava em vigor...