Sentiu o  perfume adocicado de canela e jasmim penetrar seu nariz. Era Nhá Santa chegando novamente.  Desta vez, com uma caneca de chá.  

Lá fora, o som do berrante fez-se ouvir. Euzébia deduziu que fosse  Onofre chamando o gado para o curral. E com os olhos do coração,  viu José Lino montado num cavalo, afoito e  ligeiro. Seu filho era  o melhor vaqueiro da fazenda, depois do pai. 

Fez uma prece, ainda sonolenta. Não tinha certeza se dormia ou estava acordada, e balbuciou as mesmas palavras que sempre estiveram em seus lábios: “São José dos Vaqueiros   proteja meu filho.”

 Desperta, retomou o pensamento: “ Se a montaria de José Lino não voltou...  teria  a onça também comido o cavalo? Será que os bichos vão para o céu?  O céu cheio de bichos deve ser  bonito. Bicho de todo jeito. Só bicho manso... Se existe bicho que João Velho quer ver no céu é passarinho. Nunca matou nem um. Nunca prendeu nenhum passarinho em gaiola. Matou uma onça por se achar  no direito de matar até seu semelhante, se não houver outro recurso para salvar a própria vida.”

   O gado berrou no pátio da fazenda.
 Boi Fujão foi o primeiro a chegar, mas a escolha para  o abate, não poderia recair sobre ele. Era pertença de Onofre. O boi marcado e ferrado com o sinal do vaqueiro pode morrer de velho no pasto, ninguém põe a mão.
A cabeça doeu. Euzébia chorou. Nhá Santa entrou no quarto, trazendo qualquer notícia, no intento de reconfortar uma mãe que sofre.

— O patrão mandou juntar o gado.
— Acho que acordei com o berrante tocando!
— Tocou mesmo.
Campo Grande era só silêncio, parecia  Sexta-feira da Paixão. Muitos camaradas, no entanto, quebraram o jejum de língua,  conversando baixinho:
  — Chegaram a ver a onça?
— A onça que vimos é aquela que está amarrada na casinha de  curral.
— A índia?
— Podia ser outra coisa? Acaso José Lino tá amarrado lá. Já deve estar no céu!
— No céu da boca da onça! — disse outro.
— E se José Lino mergulhou na mata atrás da onça e matou a fera? O patrão disse que era pra trazer o couro da onça.
— Pode ser também que estava tirando o couro da pintada, e chegou o companheiro dela!...
— Arrenego! Vira essa boca pra lá.
— Se a onça comeu o vaqueiro, não vai ter enterro.
— Sê besta, homem!
— É verdade que o patrão mandou Pururuca embora?
— Pururuca está com o pé na espora. Japuaçu também!
— Se Japuaçu for mandado embora, Turíbio Soberbo vai junto. São unha e carne.
— Uma carga dupla de preguiça, você quer dizer.

Alguém soltou uma gaitada.

— Não é hora de rir. Mas pode ser que seja. O patrão disse que se recuperar o vaqueiro com vida, vai mandar abater um boi gordo. Tocar viola e cantar inté o dia amanhecer.
— Mandou juntar o gado.
— Homem de muita fé, o doutor  Generoso! Nem acharam o vaqueiro e já mandou juntar o gado?
— O patrão é prevenindo. Pensa tudo com antecedência.  Se José Lino for encontrado. Tem festa. Se não. Vende a carne do boi  em Juramento.
O sol pendia amarelado, balançando no pêndulo do relógio de parede, quase seis horas depois do meio dia. 
—João Velho demorando demais — disse um pessimista com presságio de mau agouro.  
— A onça quando pega o cabrito, quer também o pai-de-chiqueiro — conclui outro.
— Conversa tola, sor!
— Se agaste não, Onofre! Se for mandar a vaqueirama embora, certeza que você fica!
— Sei não! Sei se fico não! Mandado embora ou ido por conta própria.. Sei se fico aqui não! Desgostoso com a perda do filho,  talvez nem João Velho fique nessas bandas de Campo Grande.
No mato sem cachorro, João vasculhou outra vez os bolsos e alforjes, procurando munição. Nada! Sua vida estava por um fio. Jurara vingança contra a onça que matara o vaqueiro. E o vaqueiro morto era seu filho.

Desanimou.

 Sentiu que suas forças se esvaiam. Não havia mais recursos. Ia morrer comido vivo por uma onça. A pé, no mato sem cachorro. Sem arma e ainda com uma clavícula quebrada... Foi então que se lembrou do bolso velhaco, aquele saco de pano costurado internamente, bem escondido por dentro, entre a calça e a pele, ao nível da cintura. Meteu o dedo indicador na abertura do pequeno bolso e por sorte, encontrou dois projéteis. Era a reserva de munição da caçada anterior, um dia antes, quando José Lino ainda era vivo.
Vintém  levantou-se, de supetão, João entendeu que o burro ia fugir outra vez. Apoiou o cano da carabina no “V” da forquilha e municiou a arma. Estava decidido a matar burro Xerém, caso o animal intentasse nova fuga. O cão olhou com tristeza, e sentiu-se como Baleia, na mira de Fabiano. O alvo era Xerém, mas em seguida, seria a vez de Vintém encontrar-se com seus antepassados no paraíso canino. Baixou as vistas e cruzou as patas dianteiras. Olhou piedosamente para o alto e esperou o disparo. Sabia que João municiara a arma com duas balas, provavelmente, uma para abater o burro, outra para ele, Vintém, o cão desqualificado. Pobre cão! Nem carne tinha para alimentar os urubus. Tranquilizou-se por um momento. Examinando o cheiro hormonal do dono, Vintém percebeu que ele, Vintém,  não era o alvo. Nem Xerém...  A onça estava perto, arrastando a barriga no chão, abanando o rabo, calculando tudo, pra não errar bote. Rosnou com o intento de baixar   o moral da presa. João Velho entendeu a inquietação de Xerém. Olhou o despenhadeiro e pensou: a onça está voltando para fazer o repasto do cabrito e matar  o bode. Mas onde escondeu a carcaça? Não via pedaço de roupa de José Lino, nem pelo menos uma botina descalçada na luta. Seu filho não morreria sem lutar. Isso João tinha certeza. Encorajou-se. Puxou duas vezes o gatilho. O  primeiro tiro acertou o meio da testa da onça e quando ela  virou tombada, recebeu  o segundo impacto debaixo das costelas. Vintém avançou com o pelo ouriçado, e  com os dentes abertos, feito hiena. A onça já estava morta. Xerém trocou de pé e apontou as orelhas para baixo. Há pouco João  tivera  vontade de matar o burrinho. Mas agora... Agora Xerém merecia um descanso, uma aposentadoria, até sua partida definitiva para céu dos muares.
Ocupado. Não viu o vaqueiro que se aproximava montado num burro velho.

— Tarde!
— Tarde!
— Que ocorre?
— O burro me jogou no chão e quebrei a cantareira.
— É caçador de onça?
— Não! Sou vaqueiro da fazenda Campo Grande, distante, mais ou menos, hora e meia  de jornada a cavalo.
— Que mal pergunta! E o senhor?
— Sou Alexandre Ribeiro Guedes, vaqueiro de outra querência. Vou pedir pousada na primeira fazenda que entrar. Estou sete dias viajado e o mantimento ficou pouco. Se o fazendeiro se agradar de meu serviço, fico por lá. Acertei conta com o patrão e recebi  o burro como paga.  Vale muito.  Salvou minha vida.
— Este aqui também salvou a minha vida. Primeiro, ele me derrubou e  fugiu, mas foi trazido de volta pelo cachorro Vintém. Este cachorro vale ouro... Depois, o próprio burro salvou minha vida. Não arredou o pé, mesmo sentindo a presença da onça, não arredou o pé. E o lombo dele serviu de apoio pra arma.  Por causa do burro, perdi a os movimentos de um dos braços na da queda. Também se não fosse a ajuda dele ficando quietinho, dando suporte à arma, a onça teria me comido.

O vaqueiro recém-chegado tentava compreender o motivo que levara aquele homem a caçar, sozinho, uma onça. Mas, o momento não era oportuno para  este tipo de indagações. O tempo revelaria. Viajariam juntos, se não houvesse recusa da parte do outro. Também João Velho foi cauteloso e limitou-se a oferecer água ao viajante.
— Quer um gole d’água seu ...
— Carece não!  Meu nome é Alexandre. Pode me chamar de Xandão. Fico mais à vontade.
— A travessia é longa. A fazenda mais próxima é do meu patrão.
— Chego até lá.
— Chega, se Deus quiser. Eu é que não sei se chego vivo com essa dor no ombro.
— Podemos ir juntos, seu...

Alexandre não mencionou o nome do vaqueiro matador de onça. João Velho, no entanto, percebeu e se antecipou: “ O Senhor pode me chamar de Nhô Velho, ou João Velho. Diante de Deus o nome é um só. É o nome de batismo que vale. Mas o povo bota apelido. Deve ser para ficar engraçado, mas tem apelido que ofende.”
Não encontrando argumento para contrapor a verdade, Alexandre concordou com um movimento afirmativo, de cabeça. “Sim! tem apelido que ofende. Gosto de ser tratado de Xandão. Aumenta a força, e o tamanho. Já os diminutivos, não gosto!”

— Quer ajuda pra montar?
— Faço sozinho. Mas o senhor pode me fazer outro favor: corte as orelhas da onça e ponha  nos  alforjes. Aperte a cilha de meu burro, e vamos. Tenho pressa. O sol já pendeu muito.

***
Adalberto Lima, trecho de "Estrada sem fim..."