O ouro vermelho e negro de São Félix

- I -

Desembarquei as minhas tralhas e com ajuda do meu pai levamos tudo até a nossa casa.

Minha mãe me esperava na porta da sala, que era também a porta de entrada da casa pedi-lhe a benção e ela me respondeu com um ´"bençoi" meu fio.

Tão acostumado que estava com aquela situação que nem percebi a enorme barriga de mamãe, estava com 6 meses de gravidez.

Olhando para ela eu pensei cá com meus botões: Quando papai vai parar de fazer filhos.

Mal eu sabia que aquele seria o último, 17, era esse o número de filhos. Mamãe com 35 anos de idade pariu 17 vezes, 4 morreram antes de completar 6 meses de nascido.

As causas? quem vai saber, todos os 16 nasceram em casa, não tinha um único médico na região, muito menos um hospital, somente as parteiras. Minha mãe tinha as suas parteiras favoritas, em São Félix e em Mendes Pimentel.

Me lembro bem que no quarto da minha mãe tinha uma caixa de madeira pregada na parede, era ali que meu pai guardava os remédios e coisas que usavam no parto, tipo fumo de rolo, tesoura e todos os remédios possíveis que se fizessem necessários de usar na hora do parto.

Não havia nenhum recurso, se alguma coisa desse errado, chamavam uma rezadeira.

Aconteciam muitos enterros de bebês que morriam de partos, era comum o cortejo de pequenos anjinhos pelas ruas de São Félix e também de Mendes Pimentel. O sacristão badalava compassadamente o sino da igreja, que permanecia aberta para receber o corpo antes de subir para o campo santo.

O comércio serrava sua porta no instante que o cortejo passava. Na verdade isso era feito para todos, não só para os anjinhos..

A cerimônia fúnebre durou até a chegada do padre Francisco em Mendes Pimentel, um holandês, que não gostava nada daquilo. Mesmo contrariando a todos ele proibiu que corpos fossem velados na igreja; a ordem era que subissem direto para o cemitério. A igreja nunca mais foi aberta nessas ocasiões.

Pelo menos um dos meus irmãos morreu do mal de sete dias, isso quer dizer o tétano que matava com sete dias. Os outros três sobreviveram ao tétano mas também morreram por falta de recursos, o hospital mais próximo ficava em Governador Valadares a quase 100 km de estrada de barro e com um ônibus por dia.

A nossa sorte eram homens como o sr. Barbosa em Mendes Pimentel e seu filho Artevele em São Félix. Eles faziam milagres com os recursos que tinham.

Uma vez o nosso querido goleiro do Sete de Setembro de Mendes Pimentel, o Baiano, foi esfaqueado em uma briga de bar, foram várias facadas. Levaram o goleiro todo furado para a farmácia e o grande José Barbosa junto com seus sobrinhos e filhos, costuraram o nosso Baiano que sobreviveu.

Me lembro e nem sei quantas vezes, de homens carregando uma padiola que passava em frente à nossa loja, eles passavam apressados, indo direto para a farmácia do Artevele.

Em uma dessas vezes eu vi que eles levavam um homem agonizante, com a barriga aberta por uma peixeira. Os homens contaram que carregaram o pobre coitado por mais de 2 léguas. O homem foi levado pra dentro da farmácia e o colocaram sobre uma mesa de mármore

Não havia outro recurso,os primeiros socorros eram sempre feitos pelo filho do seu Barbosa. Se desse tempo o enfermo era levado para Governador Valadares, normalmente em algum jeep particular, quando havia, ambulância também não existia. Era jeep, lombo de cavalo ou aguardar em casa até São Pedro vir buscar.

- II -

. No dia seguinte, mal o galo cantou meu pai tratou de me acordar, ainda estava escuro, tinha essa de estar de férias não, estava na hora de pegar no batente,, abrir a loja, que o dia já ia clarear.

A menina que trabalhava lá de casa pelejava para acender o fogo no enorme fogão a lenha, uma dificuldade, eu não esperei o café, passei uma água na cara, escovei os dentes , vesti a roupa e desci a rua.

Ainda com sono, caminhava devagar, passei em frente a igreja católica, e no terreiro de café do Chico Ticha, homens descarregavam sacos de café em coco. Tarefa rotineira, espalhar o café no terreiro e passar o dia inteiro com um enorme

rodo na mão virando e desvirando aquela montoeira de café em coco.

Á tardinha antes do sol se por o café era ensacado de novo e despejado novamente na tuia, vai que chove, podia arriscar não.

No outro dia fazer tudo de novo, até que o café estivesse seco e pronto para entrar na máquina de beneficiamento.

Tempo de fartura, São Félix produzia muito café o que movimentava o comércio local.

Na verdade o Café era o ouro negro daquela região, que também produzia feijão, milho,laranja, e até algum arroz, tinha também bons queijos e leite, além da cana que dava a boa cachaça do Vaguinho.

Me lembro que o Jairo cultivava arroz ao lado de sua casa, em um brejeiro que ia até a fazenda do João Rosa. Tenho ainda na boca o sabor daquele arroz que dona Zilda fazia, não existe outro igual, arroz socado no pilão, sem falar no angu de fubá tirado no moinho de pedra movido a água.

Mas era o café que sustentava tudo, tropas de burros chegavam a toda hora com seus arreios carregados de café, enchendo os terreiros e armazéns, havia vários compradores de café, como o Chico Barqueiro, o tio Diquinho, Chico Ticha, Totonho Maria e outros menores que não me lembro.

Meu tio tinha uma máquina para beneficiar o café. Quem Não tinha, alugava aquela maravilha para beneficiar os seus produtos. A máquina que era movida por potentes motores que faziam um barulho tão alto que era ouvido por toda a cidade, além é claro da própria máquina em si só, era também muito barulhenta.

Era um barato ficar assistindo aquele monstro trabalhar. Homens correndo pra lá e pra cá o dia inteiro. O café em coco era jogado em uma caixa enorme e os grãos iam sendo limpos e peneirado, pela própria máquina, tudo automaticamente.

Os grãos iam sendo descascados e desciam para umas peneiras que iam peneirando e separando os grãos de café por tamanho.

As peneiras tal qual uma escola de samba não paravam de balançar, em um ritmo alucinante, no compasso e na batida do motor elas rebolavam enquanto o café ia caindo nos sacos,

Os grãos miudinhos eram os primeiros a sair fora, assim eram classificados o ouro negro.

Os grãos maiores eram ensacados em sacos que tinham bordados em verde amarelo os dizeres: 'café do Brasil', o café especial o de primeira qualidade, esse não ficava aqui.

Compradores do Rio de Janeiro e São Paulo, .os atravessadores chegavam e compravam tudo e os levavam direto para o porto da praça Mauá ou para o porto de Santos.

Era esse ouro negro que movimentava o comércio local e de seus vizinhos. Pois sim, apesar de São Félix ser considerada uma roça para os moradores de Mendes Pimentel, era aquela roça que movimentava o comércio da sua cidade.

As cascas do café eram separadas e sopradas por ventiladores para uma espécie de túnel de vento feitos de madeiras que as jogava pra bem longe.

E na medida que iam caindo no terreno que ficava nos fundo de onde estava a máquina, iam criando morros enormes e altos de cascas de café.

A criançada, inclusive eu quando pequeno, adorava brincar no monte de cascas de café, mas ali naquele morro de brincadeiras deliciosas, morava um grande perigo para as crianças.

Quando o monte ficava muito alto, os homens botavam fogo nas cascas, mas só que a queima demorava dias até meses queimando.

Então, enquanto o fogo queimava por baixo e nunca apagava, assim deve ser o inferno.

O monte continuava crescendo, porque a máquina de limpar café também não parava de trabalhar. produzindo mais e mais cascas para o fogo do inferno.

Crianças desavisadas que iam brincar, acabavam se queimando feio naquela fogueira invisível do cão. A dor era terrível, eu mesmo já queimei meus pés por várias vezes.

- III -

O caminhão de leite já subia a rua, na carroceria além dos tambores de leite, tinha também um monte de caronas. As vezes, na falta do ônibus o caminhão de leite era a única condução do dia.

Ainda não eram 7 horas da manhã e o Águia Branca que me trouxe de Valadares, com os motores ligados já recebia os passageiros que viajariam de volta para a cidade de Governador Valadares.

O cobrador, metido em seu elegante uniforme da empresa, com seu quepe, tipo militar, que aliás encantava as meninas casadeiras da cidade,colocava as malas dos passageiros no bagageiro.

Muita gente ia chegando para embarcar, as despedidas as vezes chorosas já atrasava a partida, o motorista, também metido no seu garboso uniforme, que por seu lado também enchia os olhos das donzelas, já estava sentado ao volante do veículo.

Estava só aguardando pacientemente que todos se acomodassem nos seus lugares, antes de fechar as portas da condução e partir.

O povo curioso, que nunca saia de São Félix e que não tinha nada que fazer ali, assim como eu, acordavam cedo só para ver o movimento do povo que partia, uma atração extra, saber quem estava indo embora e por quê, se ia voltar logo ou se estavam indo para sempre.

Não tinha como sair escondido, o pessoal não arredava o pé enquanto o ônibus não saísse levantando poeira e buzinando como sinal de despedida, já deixando saudades nos que ficavam e nos que partiam.

- iv -

Depois que o Águia Branca subiu a rua desaparecendo no meio da poeira foi que segui meu caminho e fui abrir pela primeira vez a loja do papai.

Na verdade eu estava muito orgulhoso da confiança em mim depositada por seu Neca Moura.

Meti a chave na fechadura, abri a porta de madeira e entrei na loja, mas tinha mais três portas ainda para abrir, essas eram fechadas por dentro, não precisavam de chaves.

A nossa loja ficava em uma esquina, bem em frente estava a padaria do meu avô, Antonio Espanhola.

Uma beleza, quando o pão ficava pronto o Chico Galinha, que era o padeiro, vinha me avisar. Quando não era o Chico Galinha era o João Grilo, que era aprendiz de padeiro. Amigos melhor eu não podia ter, a gente ria o dia inteiro ao lado desses dois.

Ao lado esquerdo ficava a alfaiataria do Nelcy, o alfaiate que me ensinou a fazer camisas, um grande amigo que já se foi.

Do lado direito hoje mora ainda mora Oreste Rosa, vereador, e eterno aspirante do Fluminense Futebol Clube de São Félix.

A esquina da direita dava também pra rua que ia dar no armazém do Efigênio Fidélis, pai do Zé do Carmo, que anos depois viria ser prefeito de Mendes Pimentel.e seu irmão Juracy prefeito de São Félix, do Jurandir, jã falecido e da Penha, uma das meninas mais bonitas da rua, hoje minha prima já que se casou com meu primo Celso Rodrigues.

Nessa rua também morou Geralda Costa, minha primeira namoradinha em São Félix . Muitas saudades eu sinto desse tempo.

No fim da rua morava meu amigo João Bosco, seu irmão Abidon e o mais novo... e a linda Marcela.

Depois que abria a loja eu tinha que varrer lá dentro. Primeiro pingava água por toda o chão de cimento não subir poeira quando passasse a vassoura. Quando tivesse varrido tudo tinha que espanar as prateleiras com os tecidos e limpar o balcão.

Quando papai chegava estava tudo limpinho. Eu já sabia o que fazer, não era a minha primeira vez, sempre que estava de férias eu trabalhava com meu pai, só que desta vez eu voltei para ficar.

Rio 23/04/2019

José Américo
Enviado por José Américo em 19/04/2019
Código do texto: T6627711
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