PAPEL DE PÃO

Quem tem os cabelos branqueados ou é calvo por obra do passar do tempo deve lembrar quando o pão, nas padarias, era vendido em bisnagas ou “filão” como era denominado e servido envolto em um papel de baixa qualidade, liso, branco-amarelado, com pequenas manchas claras parecidas com uma marca-dágua, porém muito útil para escritos, anotações, lição das crianças e para se confeccionar barquinhos de papel.

“Seu” Manoel, português dono da padaria da esquina, como sempre a padaria estava na esquina e o dono um português, homem rude, embrutecido pela difícil vida de imigrante, sofrido pelas dificuldades do além-mar, pouco ou nada letrado porém hábil numa conta de somar, atendia no estabelecimento pela manhã de um dia comum na cidade grande, quando ao embrulhar o pão pedido pelo freguês primeiro da pequena fila formada junto ao balcão, foi censurado por este de forma não muito delicada, em razão de uma mancha existente no papel de embrulho. Alegava o cliente que o papel estava molhado pela cusparada que o Manoel expeliu ao gritar com o balconista ao lado, motivo da marca no papel de embrulho.

Com violência imediatamente o português devolveu a indelicadeza do já adversário, um nordestino jovem, de baixa estatura e cuja vitalidade era notada pela mostra de seus músculos, mesmo escondidos sob a camisa, força essa oriunda de seu trabalho como servente de obras na construção de um edifício próximo daquele local. Discussão e muitas palavras ofensivas de ambas as partes, o episódio foi, aparentemente, encerrado após ameaças de vingança pelo baiano e palavrões do português.

No dia seguinte, estava eu na fila da padaria para ser atendido, como costumeiramente fazia à primeira hora do dia, quando fui chamado pelo português, “chega cá ao lado, doutore!” e, nos fundos da casa comercial tendo um balcão a nos separar, o Manoel relatou-me o ocorrido acima, sem deixar de repetir todos os palavrões proferidos naquela ocasião e acrescentando, em tom baixo, reservadamente, que ao fechar o estabelecimento na noite anterior, por volta de 23 horas, ao seguir a pé para casa, fora atacado pelo baiano que lhe aplicou uma “gravata” pelas costas, apertando seu pescoço com os braços fortes e uma faca “peixeira” que trazia na outra mão, obrigando o portuga a engolir o pedaço de papel de embrulho de pão, motivo da discórdia. A sua ofensa maior, alegou, foi que enquanto tentava engolir o papel, o sujeito agarrado em suas costas, esfregava o seu traseiro e o apertava com movimentos circulares fazendo-o sentir o volume avantajado do que o agressor tinha por baixo da calça, entre as pernas.

- Passei por uma grande humilhação, doutore, sentindo aquilo enorme em mim, fui violentado!, sussurrou o português que pedia imediata ação judicial pelo fato, com a condenação do baiano à fuzilamento no paredão.

Informado que sem testemunhas, pois o ocorrido se deu a noite e em lugar ermo, sem marcas ou hematomas na vítima, sem meios de provar o fato e seu autor, não via possibilidade de êxito na pedida ação, sem mencionar que não temos em nossas leis a pena de morte, com o que ficou decepcionado o Manoel mas com a promessa de se vingar do baiano.

Passados poucos dias, estava eu na mesma padaria, fila e hora, quando fui chamado pelo nosso amigo: “chega cá ao lado, doutore!”, tempo em que relatou novo acontecimento. Cheio de vingança, foi no dia anterior esperar o baiano à hora da saída do trabalho, junto à construção do prédio e ao ver o jovem agressor saindo em direção oposta, correu entre os trabalhadores e pulou em suas costas tentando esganá-lo com as mãos, apertando com muita violência seu pescoço nos dedos lusitanos. O baiano, porem, era forte bastante e num golpe inverteu a posição, agarrando o portuga por trás, segurando-o pelas duas orelhas com as mãos e esfregando seu volume no traseiro do Manuel, agora com mais brutalidade, com mais força e movimentos circulares dos quadris mais intensos, num verdadeiro ato de estupro. Cansado, após algum tempo, botou o lusitano para correr, tendo antes dado uns tapas e um forte ponta-pé no assustado padeiro.

-Passei por outra enorme humilhação, doutore!, confessou novamente. Há! respondi, mas agora temos elementos bastantes e suficientes para responsabilizar o baiano, pois existe testemunhas oculares da agressão, lesão corporal, violência e tudo o mais necessário para uma boa lição naquele monstro. Vamos processar o baiano, “seu” Manoel!

Em resposta, constrangido e com furtivos olhares ao redor, disse ele que pensando bem era melhor nada fazer, que não valia a pena, mas não iria deixar, jamais, de procurar o baiano, agora porém, sem brutalidades, sem violência, sem agressões...

*Flavio Dias Semim é advogado e corretor de imóveis em Coxim, MS.

FLAVIO DIAS SEMIM
Enviado por FLAVIO DIAS SEMIM em 02/11/2005
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