EU TENHO AIDS

Sentei-me ao seu lado apenas porque tinha que sentar em algum canto. Ambos estávamos suados e cansados. Esperávamos a próxima partida à sombra de uma mangueira.

Quando nossa respiração se estabilizou, falamos do futebol que acabáramos de jogar. Ele havia sido deplorável. Havia caído sozinho duas vezes na tentativa de chegar à bola sem que ninguém o tocasse e foi motivo de riso generalizado.

Olhou para mim e me senti obrigado a retribuir seu olhar.

- Só de estar jogando agora, depois de tudo que passei, eu me sinto um vitorioso!

O homem queria contar uma história, mas eu não sabia ao certo se estava disposto a ouvir, mas, por educação, perguntei:

- Por quê?

- Faz sete anos – começou ele – eu saí com uma moça e todos no trabalho disseram que ela tinha AIDS.

Olhei pra ele com certo interesse. Era um homem de uns 40 anos, de barba por fazer, com muitos pelos brancos, mas ainda com certa jovialidade. Sua compleição era forte, mas seus olhos eram fracos.

- Depois que eles disseram que ela tinha AIDS – continuou ele – eu fiquei muito mexido, muito cabreiro mesmo. Eu era casado e tinha filho pequeno. Eu não ia transar com minha mulher sem camisinha. Ela estranhou; perguntou o que tava acontecendo. Eu dava desculpas esfarrapadas uma atrás da outra. Fiz o teste e deu negativo, mas um amigo disse que era comum que o vírus não aparecesse no resultado dos exames apesar de estar lá. No total fiz cinco exames em locais diferentes. Todos com o mesmo resultado, mas eu não acreditava.

Já não podia dormir o que prestasse. Mal pregava o olho, acordava cheio de peso na consciência, medo de infectar minha esposa e medo de que ela descobrisse. Comecei a tomar remédios e fiquei dependente deles. Emagreci doze quilos e minha magreza foi notada e comentada. As pessoas me perguntavam se estava doente e isso só me deixava mais perturbado.

- Mas você não tinha AIDS...

- Não é fácil de explicar... Deixei de frequentar os lugares aonde ia antes porque me parecia que todos sabiam. Deixei de jogar bola.

Eu trabalhava com informática e perdi vários clientes. O dinheiro em casa ficou pouco e minha mulher e eu passamos a discutir por tudo. Passaram-se cinco anos nessa situação.

Depois desse tempo, minha esposa começou a trabalhar de secretária de um psiquiatra e contou ao doutor sobre minha situação, que disse que veria meu caso de graça, que ela visse um horário e marcasse a consulta.

Fui falar com o doutor mais por educação do que por esperança, pois essa eu já tinha perdido. Já tinha me acostumado a viver assim. Fazia anos que eu não dormia de verdade. Os remédios me faziam pregar os olhos, mas o sono não era um sono que me restaurava, você entende...?

- Não tenho certeza, mas tudo bem.

- O doutor era jovem e por alguma razão senti que podia confiar nele. Pedi segredo sobre o que lhe contaria e ele me tranquilizou. Disse que tudo que eu contasse estava protegido por sigilo profissional, que jamais sairia daquele escritório.

Contei tudo. Ele ouviu como se fosse algo natural. Descartou todos os remédios que eu tomava e me receitou somente um.

Passei a dormir melhor, mas ainda não era como antes de tudo acontecer.

Um dia o remédio acabou. Fui trabalhar e minha esposa ficou de comprar o remédio. Quando cheguei a casa ela não tinha comprado. Disse que tava em falta. Fiquei muito irritado. Gritei, esculhambei ela e saí. Bati a porta puto de raiva como se tivesse numa novela. Peguei a moto e fui de farmácia em farmácia e percebi que minha esposa não mentia. Estava envergonhado quando cheguei a casa. Deitei na cama e antes das dez já tava dormindo. O dia seguinte era domingo e eu não precisava trabalhar. Dormi como um bebê sem precisar de remédio. Acho que não me sentia feliz desde... Nem lembro!

Passaram-se dias e meu sono estava ótimo. Eu não precisava mais tomar remédios e estava em paz comigo mesmo. Hoje eu durmo até no sol quente do meio dia sem a sombra de uma arvore como essa pra me dar alento. Eu durmo como um bebê.

Faz sete anos que isso começou e a moça nem tinha AIDS. Tudo foi invenção de dois colegas de trabalho que queriam comer ela sozinhos.

O apito soou. Era nossa vez de jogar. Tudo foi contado em 10 minutos. Fim de história.