A Lenda do Corpo Seco

Desde criança eu já gostava de ouvir as histórias e os causos dos mais velhos. Ainda mais quando tecidos por palavras rústicas, vestidos da simplicidade do sertão. E é com estas palavras como que talhadas em pedras em meio a espinhos que apresento:

A LENDA DO CORPO SECO

Das histórias do folclore,

Eu ouvi meu avô contar,

Capelobo, curupira,

Negro - d'água, boitatá,

Saci e lobisomem,

Também outras de arrepiar.

Ouça agora meu leitor,

Esta que vou lhe contar,

Que se deu num povoado,

Do sertão do Ceará.

E se o cabra for medroso,

É capaz de se borrar.

Em uma pequena choça,

De taipa, sapê e barrão,

Ali morava uma senhora,

Com seu filho Zé Magão,

Vivendo às duras penas,

Naquele pobre sertão.

Ela sempre a labutar,

Plantando fava e arroz,

Pra fazer o misturado,

O prato baião-de-dois,

Plantava, regava, colhia...

Sem deixar para depois.

Bem diferente dela,

Era seu filho Zé Magão,

Não aluía uma palha,

Nem um prego no sabão,

Mas pra obrar o que é mal,

Ele tinha disposição.

Praticava toda sorte,

De ato de covardia,

Humilhava a pobre mãe,

E às vezes até batia,

Roubava também o povo,

E se reclamasse ele dizia:

– Pode vim que já tô pronto,

Não arredo o meu pé não!

Se vier bulir em mim,

Mando logo o meu facão!

No espinhaço de nego,

Pois não tenho compaixão!

Mas de tudo isso ainda,

De sua maldade era pouco,

Não passava um só dia,

Sem causar algum estorvo,

Espia só o que ele fez,

Ao vendeiro, Seu Astolfo.

Ele quis tomar fiado,

Uma doze de aguardente,

O velho não lhe vendeu,

Pois lograva toda gente,

Zé Magão puto da vida:

– Deixe está seu insolente!

Tirou o couro do sapo,

E torrou lá no braseiro,

E do pó que apurou,

Pós na cama do vendeiro,

O velho ficou então,

Empolado de cobreiro.

Mas de tudo isso ainda,

De sua maldade era pouco,

Jogava nos poços alheios,

Carcaça de bicho morto

E não cabia de contente,

Com a mazela do povo.

Assim muitos queriam,

Dar fim a Zé Magão:

– Esse cabra do inferno,

Não vale um só tostão,

Vou já, já, encaminhá-lo,

À sua morada do cão!

Porém sua pobre mãe,

Por ser bondosa e serena,

Sempre o protegia,

Pois tinha muita pena,

Embora ele não valia,

Sequer uma Cibalena.

Até que um certo dia,

Zé Magão adoeceu,

Sua mão veio a secar,

E o osso apareceu,

Tomado então de bernos,

Por fim ele morreu.

Numa rede em uma vara,

Seu corpo foi transportado,

Ao cemitério do Morro,

Que estava abandonado,

Em uma cova medida,

Zé Magão foi enterrado.

Neste exato momento,

O jumento relinchou,

Coruja e anu-preto

A cidade circundou,

Já nas serras da caatinga,

O urutau até chorou.

Uma energia macabra,

Pôs-se então a reinar,

Os açudes e os roçados,

Começaram a secar,

E os animais do campo,

Começaram a definhar.

Os pastos antes verdes,

Tudo agora estorricados,

Ossadas de jumentos,

Vacas e bois encruados,

E a morte se espalhou,

No sertão de cabo a rabo.

E a coisa ficou feia,

Feia mesmo de doer,

Pois só plantas de rapinas,

O chão tinha a oferecer,

Era palma e macambira,

O que tinham para comer.

O povo ficou acuado,

Sem mel e nem cabaça,

O que tinha pra mistura?

Cuandu assado na brasa,

E a coisa só piorando,

Devido à seca lascada.

O povo do sertão,

Estava pedindo era arrego,

Com os mortos encruados,

Coisa horrorosa mesmo!

— Isso é malassombro!

— Disse o velho Azevedo.

Mandaram chamar vigário,

Espíritas e feiticeiros,

Recomendador das almas,

Raizeiros, benzedeiros,

Beatos e pais-de-santo,

De tudo quanto era terreiro.

Mas de nada adiantava,

Despacho nem simpatia.

Que abatesse a maldição,

Daquela triste sesmaria,

Foi então que apareceu,

O coveiro Zé Cutia:

— Estava eu caminhando,

No cemitério abandonado,

Vi um bicho zoiúdo assim,

Rompendo paro o meu lado,

Então pus sebo nas canelas,

Pra fugir do desgramado.

O coisa-rúim que eu vi,

Quem vê não esquece não,

Tinha os dentes encavalados,

Um filho da danação!

Bicho feio, asqueroso,

A própria imagem do cão!

— Eu também lhe digo agora!

Atalhou seu Aderaldo,

— Antonte ao acordar,

Com os grunhidos do capado,

E lá estava o bicho em pé,

Seco, duro, encruado!

— Eu também cheguei a ver,

— Falou dona Rosália,

— Seco que nem graveto,

Rompendo nas coivaras,

Mondrongo vei de fei,

Coberto de mortalhas!

— Mas o que eu dei de ver.

— Disse então Dona Geralda,

— Era Magro, encurvado,

Com uma inhaca desgraçada,

Fedia mais do que macaco,

Morto a bofetada!

— Curuis, Dona Geralda!

— Exclamou Dona Jaci,

— Mas esse que você viu,

É diferente do que eu vi,

Parecia uma caveira,

Feio mesmo a riviri!

— Eu também vi o dito-cujo!

Exclamou Zeca Leitão,

— Eu aprumei minha garrucha,

E baleei o bicho do cão!

O que for que seja aquilo,

Não é deste mundo não!

— Esse que eu avistei,

— Exclamou o Zé Tobó,

— Tinha as canela fina,

Parecendo um socó!

Com uma lapa de pescoço,

Feio mesmo de dá dó!

Um velho índio eremita,

De nome Véi Curandeiro,

Homem sábio e entendido,

Deu o seguinte conselho:

— O que está acontecendo?

Digo agora sem rodeios!

— O que vem causando,

Esta grande desolação,

É nada mais, nada menos,

Que o finado Zé Magão,

Pois o céu o rejeitou!

E a terra o vomitou!

Pois herdou a maldição.

— Só podia ser mesmo coisa,

Do finado, Zé Magão,

Pra ser então rejeitado,

Até mesmo pelo cão,

E nem depois de morto,

Não dá sossego não!

— Segundo diz os antigos,

Que quem tem mau coração,

Bate no pai ou na mãe,

Recebe uma maldição,

Vira então um corpo seco,

O morto-vivo do sertão!

O cerco mata a presa,

Sugando as seivas corporais,

Quer seja jovem ou velho,

Não poupa nem os animais,

Da vítima só sobra mesmo,

A carcaça e nada mais!

As relvas já não têm viço,

Tampouco sumo correndo,

Pois tudo o que o cerco toca,

Vai logo perecendo,

E o sertão nordestino,

Aos poucos está morrendo.

O cerco é assassino,

Cuja ocupação é matar,

Que só vai embora mesmo,

Depois que tudo sugar,

Indo pra outros roçados,

Para a morte espalhar.

Porém o corpo seco,

Não gosta de água não,

Cavem regos em volta,

Da casa e da plantação,

Encham os regos de água,

Pra conter a assombração!

Pegue também sal grosso,

Sete-sangrias, manjericão,

Arruda e chifre queimado,

E pise tudo no pilão,

Espalhe em volta das taipas,

Pra espantar a aparição!

A sequidão lambia toda,

A vida da caatinga,

Com o tempo não restava,

Sequer uma cacimba,

Só touças afogueadas,

Ficando só as quimbas.

Ora, havia certo homem,

Cabra valente do sertão,

Que dizia pra todo mundo,

Ser descendente de lampião,

E jurou pra todo o povo:

Vou dar fim à assombração.

Seu nome, Zé Calango,

Homem rústico do capão,

E tomava uma cachaça,

Que né só triscando, não,

E tinha o ranço forte,

Do cangaço do sertão.

Zé Calango foi assim,

Fazer os preparativos,

Municiou sua espingarda,

E colocou-a no burrico,

No jacá uma moringa,

Também ovos cozidos.

Se despediu do povo,

O qual lhe pôs a ofertar,

Água-benta e erva-santa,

Mel e azeite do Pará,

E embrenhou-se no cerrado,

E nunca mais se ouviu falar.

Devotos de Santa Bárbara,

Com votos e penitências,

Recomendador das almas,

E cantador de excelências,

Iam de casa em casa,

Fazendo oferendas:

— Venho a esta casa,

Trazendo esta unção,

Deus te salve casa santa,

Na divina comunhão.

— Rezemos um padre-nosso,

Todos alegres e contentes,

Padre-nosso, ave-maria,

Pelas almas dos penitentes.

— Trago para você,

Esta rama de alecrim,

Junto com óleo bento,

Do Senhor do Bom fim.

— Trago para você,

Esta rama de quaresmeira,

Plante junto a tua roça,

E também na sua eira.

— Trago para você,

Esta espada-de-são-jorge,

Pra espantar os maus espíritos,

E também o ranço da morte.

— Trago para você,

Estas varas de marmelo,

Ponha junto às tuas portas,

Para aplacar o flagelo.

Depois de um certo tempo,

Olha quem apareceu!

Nosso herói, o Zé Calango,

E do burrico ele desceu,

E o povo curioso:

— O que foi que aconteceu?

— Ah, eu nem lhes conto,

A peleja foi de lascar!...

— Pois abrevia homem!

Que se deu nas bandas de lá!

— Espera eu tomar fôlego!

Que já, já vou lhes contar.

Estava eu caminhando,

Por entre o capoeirão...

Trecho extraído do Cordel:

A Lenda do porco da Pacuera

Disponível na íntegra na

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