*A lenda "Num se pode"

       

        A lenda ‘Num Se Pode’

Meu primeiro contato com essa história deu-se ainda durante a minha infância

Morávamos na Rua 24 de Janeiro, lado da sombra, entre as Ruas Palmeirinha e Rua do Norte que, anos após, tornaram-se Tiradentes e Jônatas Batista, respectivamente.

Recordo-me que aquela fora uma manhã de muito alvoroço. Cada pessoa que ouvia o relato recontava sua versão a seu modo e gosto, acrescentando, para isso, seus próprios condimentos.

Era, no entanto, insofismável a existência do fato. Quem contara fora Zé Leite, músico e tipógrafo, que retornava de uma festa, na madrugada daquele sábado, com sua clarineta e partituras debaixo do sovaco, após sua participação no evento.

O que antes se sabia era que esse fenômeno assombroso só acontecia na Praça Saraiva ou nas imediações. Agora, o demônio resolvera caminhar rumo à periferia norte, inquietando toda aquela região do Mafuá, que nem de longe era o que hoje é. O medo de que tal acontecido viesse a quedar-se ali por muito tempo, era indisfarçável.

Teresina teve seu centenário em 1952 e, mesmo assim, não passava de uma biboca. Foi por esse tempo que isso aconteceu. Toda a região do Mafuá era constituída de famílias humildes. A quase totalidade das residências era de casas com paredes de enchimento e cobertas de palhas de babaçu. Existia posteamento de ferro com altura de nove metros de altura, para iluminação pública, pois a maioria das casas não tinha energia elétrica, pelos argumentos já mencionados. Era comum, portanto, o uso de lamparinas a querosene.

Eu sempre acreditei que esses tipos sobrenaturais fossem próprios de cidades pequeninas e povoados, mas desde que vi o filme ‘Um Lobisomem Americano em Londres e outro em Nova York’, vi que tudo pode acontecer.

Como já foi mencionado, o músico Zé Leite retornava naquela madrugada de um dos seus ganha-pão, cansado, a passos lentos, absorto em seus pensamentos, quando teve um forte pressentimento que todos nós temos, vez por outra, de estar sendo seguido ou observado. Virou-se e viu que uma mulher caminhava apressadamente para o alcançar. Não era comum que uma mulher andasse à deriva em tal hora. Resolveu esperá-la, pois certamente ela estava com medo e ele lhe seria, de certo modo, um refúgio de segurança.

Ela usava um vestido branco de saia rodada e decote sensual, sendo que suas costas ficavam encobertas pelos longos cabelos. Calçava sapatos de salto que afundavam na areia fofa daquela rua sem revestimento e seus lábios traziam as marcas de um batom encarnado bem vivo. Não era bonita nem feia. Tinha um rosto comum, altura mediana e um corpo proporcional ao seu peso.

Ele estava a um quarteirão de sua casa e a conversa, portanto, seria curta. A primeira abordagem dela foi para lhe pedir um cigarro, no que foi atendida prontamente, embora recusasse o fósforo. Continuaram caminhando lado a lado, até que ela lhe pediu para parar no primeiro poste. Foi quando ele resolveu se identificar:

– Eu sou José Leite, tipógrafo e músico nas horas vagas. Moro aqui perto, e você?

Parecia que isso era uma espécie de cabeçalho obrigatório para o desfecho da tragédia e ele, que tinha alma timorata, começou a gelar diante do absurdo da visão. Sendo um homem de pele branca, pendendo para o fogoió, seu rosto ficou como lua em quarto minguante: metade branca, como cera lívida; metade preta, de pavor.

A mulher com o cigarro na mão começou a crescer lentamente e afinar o corpo, como se fosse de borracha, até atingir a lâmpada onde acendera o cigarro. Em seguida, respondeu:

– Meu nome é “Num Se Pode, Num Se Pode”!

Zé Leite que já conhecia a história da assombração de “ouvir dizer”, agora a via pela primeira vez, em carne e pele. Mais que depressa, cuidou de escafeder-se, tão rápido como um raio, percorrendo uma distância de uns trinta metros até sua casa, que mais lhe parecerem léguas e uma eternidade.

Enquanto, atabalhoadamente, tentava abrir a porta com o lenço de cambraia, pensando que eram as chaves, tal o grau de nervosismo, olhou de volta para o poste, bem a tempo de ver a marmota diminuindo de tamanho, até dissolver-se no tempo como nuvem.

Ele contou essa história e o que mais desequilibrava qualquer raciocínio era a existência das marcas dos sapatos dele e dela que se encontravam ao redor do poste.

São coisas de minha terra, que eu conto, para que não se percam no tempo.

(Lenda Piauiense, armengada à minha guisa)