O Voo dos Colibris

 

O Rio Todos os Santos – então, muito piscoso – deslizava pelas planícies do município da minha cidade: Teófilo Otoni – Minas Gerais. Seu destino? O mar! Às suas margens – e sem muito esforço – podia-se vislumbrar belas e floridas ingazeiras formando as suas matas ciliares. Dos seus frutos se alimentavam os habitantes do rio, tornando-o ainda mais piscoso e cheio de abundantes vidas.

Era época da floração das árvores ingazeiras. As suas perfumadas flores eram atrativos convites para o edaz bando de beija-flores virem participar do “Festival do Néctar”. E ele – o abundante e doce néctar – era delicioso, gratuito e gracioso!  
Moleque, trazendo a tiracolo um bornal cheio de munição (Bolotas feitas de terras dos formigueiros e queimadas em uma chapa sobre uma trempe feita de tijolos.) para caçar os preás, habitantes das margens do rio e criadas em meio ao capim meloso. O Eu Menino sabia que o capim meloso era o formador do habitat natural, bem como, o alimento preferido desses roedores. Roíam os roedores o tenro capim que lhes saciavam a fome e os engordavam para a fome do Eu Menino vir a saciar.

Termina o dia. O sol em ocaso se põe por de trás das cacundas dos montes e se esgueirando por entre as coloridas nuvens. Olho-as! Admiro-as com os olhos marejados pela emoção! Vejo na minha utópica pareidolia de criança as inúmeras formas de carneirinhos flutuando no éter – e uma enorme variedade de outros bichinhos – sendo formados pela lerdice das nuvens passageiras. Imagino que os seus variados e belos formatos foram esculpidos com o cinzel manuseado pelo Criador Celestial. Extasiei-me ante a imensurável beleza.


Agora, o bornal carecia de munição – estava lotado com o meu almoço de amanhã: os gordinhos preás.  Estava, pois, garantida a carne para da refeição do dia seguinte – isso era o mais importante!

Tendo cumprido o compromisso, imaginei-me no sacrossanto direito a um merecido descanso – o de refestelar-me! E o guerreiro se refestela. Agora, derreado estou sobre um grosso galho da frondosa ingazeira, de onde me encontrava observando o por do sol preguiçoso, se escondendo por detrás das cacundas dos montes.

O farfalhar das folhas da ingazeira ao sabor dos ventos, se mesclavam ao estalidar das asas dos vadios colibris. E o Eu Menino se deliciava com o magistral e mavioso esvoaçar dos lepidópteros. O meu olhar vagueava lúdico do poente infinito, chegando à outra extremidade – o finito! E o finito era onde se encontravam os lindos colibris que, agora, pousados sobre um minúsculo galho – e, por já estarem saciados, com os papinhos cheios –, aproveitavam das suas proximidades com as águas para se deleitarem em um gostoso banho de despedida do dia que o ocaso, ora, trazia.

Hoje, o ‘Eu Homem’ (Confesso!) sente vergonha dos atos do ‘Eu Menino’ pela invasão da privacidade dos pequenos lepidópteros no seu banho ao entardecer. Talvez, aquele seria o banho de uma provável noite de núpcias a ser vivenciada em um ninho preparado para uma primeira nidificação e doce proliferação da espécie. Meras elucubrações? Sei não, mas... pode, sim, serem (Sei lá!..), por que não?

O migrante Rio Todos os Santos – seguindo o seu volúvel DNA – segue o seu destino. Lembro-me de ter sentido a vontade de coloca-lo no meu bornal. Por ser pequeno o bornal, guardeio no seio do meu coração para tê-lo em eternas lembranças! E o Rio Todos os Santos de mim se despede e segue. O seu destino era os braços do mar que, sempre abertos, o esperava saudoso para um fraternal abraço. E lá vai o Rio, levando nas suas águas as sementes do ingá para fazer renascer em suas outras margens, novas ingazeiras que alimentarão – com seus frutos – os peixes e com o seu néctar, os famintos e insaciáveis colibris das outras plagas. E segue o rio. No seu volúvel murmurejo vai levando, frutos, esperanças e saudades. Saudades que ele – mesmo com a força do seu volúvel DNA – não as tira de mim!

O Rio é como o inexorável tempo e, como ele, indiferente passa célere! Olho-o passando e rio do vadio rio que, beija as suas margens e segue na busca de novas margens, cavando caminhos. O desembestado rio – mesmo tentando – não consegue, todavia, levar a minha fiel sombra pairando por sobre as suas águas. E ela, a minha sombra, permanecia a balouçar sob o volteio das marolas, bailando com elas sob os acordes da melodia imortal de O Lago dos Cisnes.

E como o Rio, o tempo passou. Hoje, o Eu Moleque não mais existe – há, todavia, um saudoso Eu Homem. Saudoso por lamentar o fato de não mais poder ver o magistral voo dos colibris porque as ingazeiras não há mais. Matas Ciliares? Também, não há mais. O Rio Todos os Santos chora porque nem a força de todos os Santos Rios – que eram seus fiéis afluentes – conseguiram salva-lo. Destruir, matar e depredar é típico da natureza humana! E a “besta humana” a tudo matou. Matou o Rio Todos os Santos e todos os demais Santos Rios que eram denominados pelos nomes dos Santos – seus afluentes! (Daí, o nome do Rio Todos os Santos- imagino!) Todos eles se tornaram esgotos a céu aberto, abertos que foram pela ganância e insensatez dos homens que - sem um dó sequer ou piedade - os julgaram em um Tribunal de Exceção, assassinando-os sem o devido direito legal à ampla defesa e ao contraditório: a sangue frio!

Matas Ciliares, as ingazeiras floridas, o habitat natural dos suculentos preás que, mortos, matavam a fome do Eu Menino – não há mais. Nada mais há! E aonde foram parar o pairar dos magistrais Voos dos Colibris? Voos dos Colibris não há mais. Nada disso há mais. E agora? E agora, José? E agora – todos nós – irresponsáveis “Josés”? Quanto a tudo isso somente há o lamento por nada mais haver!
 
Epílogo:
 
O Eu Homem se encontra assentado em frente a uma televisão. Na minha janela - situada no quarto andar do prédio onde moro – há pequenos vasos onde se encontram plantados alguns cactos com as suas minúsculas flores. São de uma pequeneza insignificante, mas, de uma grandeza e significativa beleza por ofertarem o saboroso néctar aos colibris. Confesso que não conseguia imaginar como elas, tão minúsculas, conseguiram atraí-los – mas, atraíram sim!


Ouço um estalidar de asas. Olho para a janela, e lá estava um deles: um belo colibri. Ele pairou frente à minúscula flor, enfiou o seu agudo biquinho por entre os arremedos de pétalas, sugou uma provável gotícula do néctar – se é que néctar havia – engatou uma “marcha à ré”, pairou, subiu, desceu, volveu-se para a direita, esquerda, deu uma reviravolta e ‘vupt’, mais uma guinada e ‘vapt’ – se foi! Fiquei encantado com o seu bailado – é algo incrível, fantástico!

Incrédulo, fui até o peitoral da janela. Queria ver para aonde ele teria ido. As árvores existentes nas imediações – pude notar: não são floridas, são ornamentais. Para aonde ele foi? Não sei! Volvo às minhas lamentações por não haver mais árvores floridas; não haver mais flores e nem os néctares para os famintos Beija-flores se saciarem!

Já sei o que devo fazer e farei. Comprarei um vasilhame apropriado para alimentar aos colibris. Dito e feito isso – e isso fora feito! Dirigi-me a uma Loja Pet onde comprei um bebedouro para colibris. Já em casa, perguntei ao Dr. Google:
-Dr. Google, como se prepara o alimento para os colibris?
-“Coloque água no recipiente, cuja dosagem não pode exceder à metade do invólucro. Adoce-a com uma generosa dosagem de açúcar e, em seguida, acrescente uma ‘pitadinha de sal’. O bebedouro deverá ser lavado diariamente para evitar que o alimento possa sofrer alterações químicas, prejudicando a saúde dos colibris” – dissera-me o mestre Dr. Google! Portanto, ao mestre Dr. Google, com muito carinho – os meus agradecimentos!

Como desejava colocar o bebedouro no parapeito da janela, peguei a furadeira, furei o concreto, instalei uma bucha e afixei um gancho. Em seguida, arrumei um fio de arame que sustentaria o bebedouro já devidamente cheio e preparado com a beberagem – o alimento dos meus amiguinhos!
Dependurado o bebedouro, refestelei-me (Não em um tronco da saudosa ingazeira às margens do Rio Todos os Santos.) na poltrona da minha sala e fiquei à espera deles, os lindos colibris, para as suas primeiras refeições. Não demorou muito para que eles – com a imensurável alegria e deleites meus – se apresentassem para o repasto cuidadosamente preparado pelo ‘chef’, o Eu Homem, agora, novamente sendo o Eu Menino, o indomável Indiana Jones – o valente caçador dos gordos preás e apaixonado pelo Rio Todos os Santos e pelos voos dos colibris!

Eles fizeram a festa. E eles se banquetearam como esfaimados retirantes da sua seca região ante a uma refeição oferecida. Extasiado estava, extasiado estou. Extasiado e boquiaberto sempre ficarei ante a tão magistral, saudoso, mavioso e inebriante espetáculo que é o encantador Voo dos Colibris.

Assistindo àquele tão lindo espetáculo, decidi que desligaria a televisão. Desliguei-a! Nenhum dos artistas (‘Hollywoodiano’ – Global ou não.) mereceria a minha atenção, os meus aplausos. Somente os meus graciosos e lindos amiguinhos colibris (Com o estalidar das suas asinhas em “brigas” pelo alimento e manutenção territorial; com seus alegres trinados e volteios magistrais.) seriam – e sempre serão – os merecedores do Oscar de melhores bailarinos neste palco da vida - com o seu inigualável ‘Show Business’ - ao presentearem-me com o inesquecível e saudoso Voo dos Colibris!                             
 
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Altamiro Fernandes da Cruz
Enviado por Altamiro Fernandes da Cruz em 23/05/2020
Reeditado em 04/11/2023
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