" Aqui se faz, aqui se paga"

“ Aqui se faz, aqui se paga”

A mansão na imensidão dos jardins, rodeadas por outras mansões era o cenário de acontecimentos que estremeceriam os corações de homens de fé.

Nestas paragens o jardineiro e os vigias recebiam sua porção de alimento pelo lado de fora das oponentes cozinhas, sem nunca dirigir uma palavra a patroa. Havia árvores, flores de todas as cores e muitos pássaros. Motoristas vestindo tradicionais uniformes aceleravam possantes automóveis blindados sem direito a um sorriso, uma palavra. Recebiam o comando e diziam; sim senhora ou sim senhor.

Não era diferente, na mansão vizinha, Avenida Patagônia perto do número treze. Residência de uma senhora de hábitos estranhos. Vestia sempre roupas sóbrias e vivia uma solidão de bruxa. Esporadicamente, algumas outras sombrias senhoras a visitavam – quem sabe; aniversario de uma delas ou dia das bruxas, comentavam alguns vigilantes noturnos das redondezas.

Durante a espera da próxima corrida, o motorista lustrava o automóvel com tanto esmero que dava para pentear os cabelos no brilho da lataria. O que não arranca se quer um pequeno elogio da velha senhora.

O celular-rádio toca. Avisam. Prepare o carro. A patroa vai sair...

Imediatamente ele abre a porta esquerda traseira do automóvel, certificando-se que nenhum objeto está sobre o banco que possa incomodar. Nem bom dia. Nem boa tarde.

Senta-se e diz; Ao shopping de costume.

Os portões de aço e automático se abrem e o carro desfila entre os carros dos plebeus. Ele realmente é lindo. Imagine o dinheiro que esta senhora possui. Pensa num suspiro o garoto pedinte do farol. Mas não tem tempo de bater no vidro selado e o carro arranca.

Era o momento das compras. Nas lojas de importantes shoppings o cartão de crédito não limitava o número de pacotes que lotariam o porta-malas.

Sempre a distância o motorista observava a velha e rica senhora mantendo sua independência distribuindo centavos de gorjetas aqui e ali para tristeza dos vendedores.

Ah! Esse colar de pérolas que ela ostenta no pescoço deve valer milhões. Claro que as vendedoras falavam baixinho para não provocar um mal-estar. Conheciam, por experiência do gênio imprevisível dos ricos de família e em particular desta misteriosa freguesa. Aqueles que a fortuna vem de séculos atrás. Dizem, elas, que os novos ricos são mais sociáveis – falam mais.

Voltando para casa a senhoria passou mal e levada ás pressas para o hospital, recebeu a triste notícia do médico após vários exames – câncer mamário.

O céu caiu em cima da cabeça da pobre rica senhora. Não havia outra saída senão extirpar o seio. Extirparam! Ela e toda a criadagem choraram por muito tempo. Muitos anos.

O tempo, como bálsamo foi trazendo a rotina de volta. Flores nos jardins, pássaros nas arvores. E o velho e fiel motorista levando-a as compras, após lustrar o imponente automóvel.

Mas havia algo diferente, ela estava ainda mais fechada, as ordens viam num tom mais suave e menos ríspido, mas com certo azedume. E sua expressão era pensativa. Parecia olhar para o além. E as compras diminuíram.

Chegava aos shoppings e preferia tomar uma cerveja importada sentada num bar de um dos vários restaurantes da praça de alimentação.

Pensando horas a fio, sobre a vigilância do fiel motorista. Algo realmente estava errado ele pensou. Essa atitude da patroa é anormal. Ela só bebia vinho antes. E ainda por cima na hora das refeições.

Três longos anos daquele dia infernal havia ficado para trás, aonde ele extirpou os seios.

O que estaria acontecendo?

Ele nunca havia dirigido uma palavra a sua patroa, mesmo tento anos de serviços prestados, sem faltar um só dia. Preocupado tomou uma altitude inesperada.

Senhora. Está tudo bem?

É da sua conta. Que intimidade são essas! O pobre motorista baixou a cabeça e voltou a ficar a distância. No fundo estava furioso.

Chegando a mansão a cozinheira se dirigiu a ela toda sorridente e disse: patroa; preparei o prato que a senhora mais gosta.

E quem é você para saber o que mais gosto. Ponha-se no seu lugar,

E a pobre cozinheira saiu aos prantos.

Os funcionários percebendo que algo estava errado fizeram uma reunião secreta e decidiram procurar o filho da patroa. Na realidade, todos já sabiam que ele era filho adotivo e que a patroa não tinha família. Era uma mulher só. O retrato da solidão. Havia muitos fuxicos sobre sua vida. Alguns diziam que ela por ter sido uma mulher muito ruim, agora estava pagando; com a doença e a solidão. Claro que falavam as escondidas, porque se não estariam todos no olho da rua.

Doutor, como se dirigiam ao filho, algo de errado está acontecendo com a senhora sua mãe, nos perdoe a ousadia de procurá-lo. Fizeram bem, respondeu educadamente.

Após uma longa conversa com a mãe, ele a convenceu a voltar ao médico. E para espanto de todos, após novos exames o câncer havia voltado e já estava em fase de metástase, principalmente no crânio.

As recomendações foram: ela não deve fazer grandes esforços, deve ficar na cama literalmente. E a cada quinze dias voltará ao hospital para receber transfusão de sangue e remédios para dor, a qual aumentará gradativamente.

Desta vez o céu caiu na cabeça de todos. Todos os empregados foram dispensados e a mãe foi transferida para uma casa menor. Contrataram um auxiliar de enfermagem e uma senhora que cozinhar duas vezes por semana. Como a maior parte da alimentação era comprada segundo a prescrição da nutricionista do hospital a cozinheira não tinha muito trabalho. O que preparava era congelado e depois só descongelar no dia a dia. E também aproveitava para fazer a faxina na pequena casa.

Trocar frauda de um bebê já difícil, imagina trocar frauda de um adulto. E veio com ela o pequeno cachorro de raça que se criara nos seus braços desde bebê. Na realidade aquele cão era, para ela, seu verdadeiro filho, que sempre viveu em cima da cama sob seus carinhos. Vê-la com brincando com seu cão, era ver uma metamorfose; a velha senhora sorria, chorava – virava gente. E o danado do cachorro, vivia e dormia em cima da cama. Não aceitava outro local, exceto descer ao chão para tomar água e comer um pouco de ração, colocados em vasilhas num canto da varanda, ele realmente era muito mimado.

A velha e rica senhora, agora magra como um palito, tinha pendurado na parede uma prova inquestionável dos seus momentos de glória. Seu rosto no retrato da parede exibia a glória passada; via-se que fora uma loira de olhos azuis e provavelmente um metro e setenta de altura e uma pele de dar inveja a muitas mulheres - lisa e dar cor de pêssego maduro. Sim, ela fora muito linda.

O jovem auxiliar se esforçava muito. Limpava o que o cachorro defecava e, principalmente sua urina por toda a casa, isso por não ser castrado. Dizem que os cães delimitam seu território urinando pelos cantos, esse fiel amiguinho queria a casa toda só para ele. Era uma tarefa complicada. Mas ele se dividia e não descuidava da senhoria que exigia os mesmos cuidados. Ela sabia comandar. Muitos generais do exército ficariam de olhos arregalados. Dia após dia a velha senhora aumentava sua implicância.

Expressões como; você não serve para ser enfermeiro. Você deixou a luz acesa.

Você é um porco. Já lavou as mãos...

Como ele ainda estudava. Muitas vezes ele vinha, tarde da noite sem comer nada. Mas não se arriscava a em abrir a geladeira. E mesmo na hora do almoço, onde já se fritava linguiça ou um bom bife ele era ignorado. Jamais convidado.

Um dia, com fome, teve a infeliz ideia de pegar uma banana. Foi o caos. Como você pega minha banana, disse ela, você sabe que estou enferma e não posso ir ao supermercado. Eu compro outras, ele retrucou? Não resolveu o problema.

Ela se revelava astuta. Quando precisava pedia com um jeitinho de quem estava sofrendo muito, e estava, porque sua doença não tinha nenhuma possibilidade de cura. Era terminal – exceção se um milagre acontecesse.

E o pior, segundo ela havia uma trama para ficarem com seus bens. Pessoas que antes lhe pareciam de confiança demonstraram interesse em cuidar dela, mediante a entrega de todos seus bens. Verdade ou mentira era uma situação insuportável. Para obter mais atenção do auxiliar, ela jogava com a hipótese de deixar algo para ele. Por instante acreditou na bondade da velha senhora.

E a implicância se estendia a pobre cozinheira. Nunca sua comida estava a contento.

Numa manhã de domingo, deixando de aproveitar sua folga, a cozinheira quis agradar esquentando o pão com manteiga na frigideira. Isto está queimado. Não é assim que se faz... Não só se recusou a comer, como a chamou a bondosa cozinheira de gentinha. E ainda a humilhou; falta-lhe inteligência até para esquentar um pão, senhora.

Quando ela ia para o hospital para receber medicações e transfusão de sangue.

Aproximadamente quinze dias de internação; o auxiliar dormiu no hospital. Estacionamento e comida por sua conta.

Certo dia ela expressou desejo especial de comer um prato caríssimo de uma desses restaurantes da classe média alta, ele pagou as poucas economias e satisfez o desejo de sua paciente e “amiga”, como ela afirmava, esperando um reembolso que não veio. Foi uma noite de festa para ela, inclusive para os enfermeiros de plantão.

Parecendo nascer uma amizade ele foi convidado a dormir na casa, por um preço de aluguel relativamente baixo. Em troca ele continuaria a atender a senhora. Foi o pior acordo da vida dele. O que parecia solucionar problemas de transporte e moradia se transformou num pesadelo.

Agora, ele era, um cuidador, e um auxiliar de serviços gerais. Obrigado a limpar a comadre, limpar a sujeira do cachorro, dormir com ele e levar broncas como se tudo isso fosse sua obrigação. Nada mais era espontâneo e por amor ao próximo segundo ela. Até cozinhar ele cozinhou, por que a cozinheira não aguentou e foi embora.

Enfim, mais um ano se passou. Ela deitada na cama e totalmente dependente. Seu corpo bastante debilitado. Muito magra. Mas seu cérebro intacto. Cada vez mais ranzinza.

Certo dia ao descer no andar de baixo, onde ficava o quarto dela, o auxiliar ouviu: “não aguento mais meu auxiliar, ele não faz nada como estou acostumada". E isso minha amiga, não tem nosso sangue, não é da família. Ele me paga uma quantia baixa por mês. Mas essa suposta ajuda deixa muito a desejar - é de baixa qualidade. Além do que usa meu telefone, meu fogão e até usa minha geladeira. Está certo que limpa a comadre, inclusive o que meu cão faz pela casa. Ele até faz isso, mas não do jeito que eu gosto que façam.

Ainda por cima não tenho confiança nele, por isso mantenho o quarto onde guardo minhas coisas de valor trancado. O interessante é que o conheço a mais de cinco anos, mas sabe-se lá...

Ele vê televisão e conversava muito comigo. Houve minhas queixas. Até mesmo meu desejo de me suicidar. Mas ele pega minhas coisas; uma bolacha, um ovo, um cigarro. E eu odeio isso. Ele não é da família, “certo”. Tá entendendo prima, me martírio.

O rapaz que pensava conhecer o coração da velha senhora. Antes mesmo que o telefone fosse desligado. Pensou; aonde vim me meter. Na casa de uma bruxa com coração de pedra.

Sentiu-se muito mal. Havia confundido amizade com paciente e levou um choque. Nesta mesma noite quando os tradicionais gemidos de dor e agonia aumentaram expressando uma dor maior na velha senhora. Algo de ruim estava acontecendo.

O auxiliar havia tomado uma decisão.

Ao contrário de outros dias, não saiu correndo às pressas para socorrê-la. Um pensamento invadiu sua mente. Provavelmente as duas amigas que a visitam, não são amigas e sim parentas. Talvez primas. E naturalmente, o verdadeiro socorro. Pessoas responsáveis por ela. E o filho adotivo; vou ligar para ele? Continuou pensando. Foi ao banheiro. Fez a barba. Lavou o rosto. Passou desodorante. Escovou os dentes. Colocou uma roupa comum. Pegou uma folhagem artificial que enfeitava o criado mudo de seu quarto. Apanhou a mochila e saiu pela porta da frente. Quando passou pelo portão ouviu seu nome aos gritos.

Sem olhar para trás, arremessou as chaves amarradas á folhagem por entre as grades do portão, e partiu...

jaeder wiler
Enviado por jaeder wiler em 27/06/2020
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