Buchada Hereditária
Lá pelas tantas idades, quando já se considerava uma jovem mulher, Mariazinha encasquetou com a ideia de cozinhar, coisa que não era de se espantar, pois a moça sempre foi prendada, mas o que ninguém esperava, sendo a garota tão mansa e delicada, era que a sua empreitada começaria com tanta ousadia.
A mãe certo dia chamou-lhe a atenção: Maria o que é isto menina? Desde hoje observo você fitar essas panelas, e mais parece uma estátua de tão parada e pensativa.
Ali naquele canto da casa, Mariazinha de olhar sereno e concentrado, sentia o prazer da culinária raiz. Na sua origem tão clara, nordestina orgulhosa, aprendia sempre um algo mais, mas foi no preparo de uma buchada servida com regalo para familiares e amigos, que ela se reconheceu.
Uma aprendiz de peixeira na mão, um bom olfato para os temperos da terra, e uma habilidade nobre que se descobria em cada etapa do preparo. As perguntas iam chegando a sua mente e ela logo respondia, sua intuição se constatava nos traquejos com aquele espaço limitado da sua cozinha.
O que fazer com tantas partes? E aquele bucho retalhado? O aroma tão forte seria suportado? Nada disso era problema para a menina franzina e de olhos mimosos que desfilava seu caminhar de boneca de pano, com chinelinho de dedo.
Com cuidadosa higiene, ela pegava o bicho com gosto, e o bode conterrâneo já morto, parecia que tirava o chapéu em homenagem a moça. Maria sabia tanto o que fazer que muitos ficavam intrigados, caso até de repensar, de onde tinha surgido tamanho dom?
No seu quite de preparo, tinha faca, linha e agulha, certamente quem nada conhece da história, estranha, será treino de corte e costura? Além disso, tinha um tratado com suas panelas que eram essenciais, e tinha mais estima ainda pelas colheres de pau.
Com o picado dos “miúdos”, assim chamados os órgãos vitais e sangue do animal coalhado, isso tudo se temperava, e a pontinha da língua provava com dedicação a suculência e ardência, assim como, o sal e o aroma dos temperos regionais – cominho, alho, coentro, louro e outros...
Mariazinha filha que belezura é essa? Você realmente é tinhosa demais, consegue fazer o que muita gente por essas bandas não é capaz – A jovem tinha uma mãe zelosa e sua melhor amiga, e entre as qualidades da senhora, uma de encher a vista era apoiar os filhos.
A mãe chamava numa boa hora, as buchadas estavam sendo feitas, a garota toda artesã colocava pra moer segundo o ditado, e não desaprumava o pulso, enquanto alinhavava cada porção. O picado de bode no bucho, e a buchada podia ir para a panela, mas não acabava por ai...
O prato tradicional é dotado de vários acompanhamentos, os idosos bem sabem e conhecem esse experimento de perto.
As tripas enroladas no pé do bode são um sucesso, e o miolo do cérebro carrega o mito de fortalecer o individuo que comer.
Pois bem, feitas as obras, tudo refolgava no fogo, buchada, pé e cabeça, Maria olhava para os lados e com um giro disfarçado, sorria pela conquista.
Poucos entendiam o fato, muito menos aquela felicidade genuína de uma moça que podia ser tudo na vida, mas queria ser especialista naquela comida, e tinha uma crença que dela ninguém tirava. O bode era uma honraria, e a buchada era uma mágica iguaria.
Alguns anos depois, sentada no sofá de uma tia avó, Maria contava as delícias que cozinhava e que seu maior prazer era fazer buchada. O que ela não esperava é que seu encanto ia se revelar naquela sala. Aquela senhora alva, a qual a menina respeitava, a fez parar por um instante...
Ela então lhe disse: sabe Mariazinha você me presenteia ao vê-la se empenhar com esse talento, algo que nunca esquecerei é o cheiro da buchada de minha mãe, sua bisavó materna, também de nome Maria.
A moça encheu os olhos d’água e voltou no tempo com aquelas palavras, Maria Capitulina era a vozinha dos sonhos de criança, que tanto lhe enchia de trança os cabelos, e acariciava seu rosto com desvelo.
Aquela mesmo, que a moça acompanhou até o fim da vida, como exemplo de mulher temente, dedicada a sagrada família.
Carla Bezerra