O que as demais espécies nos ensinam

Desde a partida misteriosa de Meggie, minha cachorrinha “tiquim”, tive medo da fuga dos animais que moravam comigo. Ela era fujona desde sempre. Não tenho lembranças de tantas fugas nos cachorros que tivemos antes dela. Quando se deu o ocorrido meu pai já havia adotado Raika, que ficou no lugar da falecida Pitty, que era mais nova que o falecido Bento, Lecshimoniose...

Procuramos por um tempo e em meio a procura simpatizei-me com um gato comunicativo na rua. Regatei-o da chuva para levar ao meu namorado e sua família apaixonada por bichos. Apaixonei-me e, em carência, quis ficar com ele, o que é sintomático, pois preenchi um vazio de um bicho com outro sem nem ao menos passar pelo luto. Batizei-o de Whisky e esse foi meu primeiro gato. Agora faça os cálculos: gato é um bicho muito livre, eu tinha acabado de perder um bichinho por fuga, nem curei um luto e adotei um gato, que gosta de sumir e subir em lugares. Pois bem, desesperei-me algumas vezes, apesar de ser considerado um gato calmo.

Pouco tempo depois adotei Tétis sem o consentimento dos meus pais, que agora cuidam dela e arcam com as dificuldades de lidar com a barulhenta, arteira e ágil cadela que tem cabeça de beagle em corpo de mini pitbull mal alimentado, totalmente similar ao Maylon, cachorro do Máscara( Só os de boa infância sabem). Lembro a primeira vez que achei que ela havia fugido...Corri desesperada pelo condomínio, estava em forma, depois percebi que ela estava debaixo da cama por medo da gritaria da minha vó paterna. Depois houveram algumas fugas, mas dei a sorte de seu constante retorno espontâneo, o que me gerou choque e reflexão sobre o quanto a liberdade de Tétis torturava a mim.

Fui morar só, deixei todos com meus pais que sabem lidar muito melhor com o mundo animal que eu, apesar de comê-los, o que não é legal. E andando pela rua em uma quarta-feira de cinzas, fui adotada por Pagu, gatinha minúscula, do tamanho da minha mão. Já estava engatilhada na reflexão sobre essa minha colonização dos bichos e percebi que isso se estende para todos os animais que convivo, inclusive seres humanos, aliás, mais com eles. O medo de perder, como prender, como segurar... Pagu me seguiu na rua e subiu até meu apartamento sem nem mesmo eu segurá-la e, desde então, nunca se desgrudou de mim. Nunca telei o apartamento por não ter grana e por ter a certeza de que não me manteria ali por muito tempo, mas mantinha tudo fechado. Mesmo assim a danada sempre ficava escapando pela porta e indo para área compartilhada do condomínio.

Quando me mudei para uma casa com vários pontos de fuga, vi que não teria saída além de dar-lhe a liberdade. Porém, castrei-a... Sim, sinto-me mal por isso, apesar das inúmeras recomendações como algo saudável e para controle de natalidade desses bichos que ficam abandonados. Mas que forte essa palavra...Quando usada para nós humanos, soa agressivo e não penso ser diferente com eles. Quem somos nós para agir de tal forma? Especistas! Lutamos por nossos direitos de liberdade aos nossos corpos e natureza, castramos e limitamos eles. Enfiam, castrei-a, mas dei-lhe o direito de ir e vir. No início ela foi muito, estendendo noites, trazendo companheiros, subindo em árvores gigantes e, obviamente, preocupei-me, mas não havia o que fazer. Depois percebi que Pagu sempre voltava e relaxei.

Todo esse processo nunca foi desacompanhado de uma reflexão profunda sobre como isso se estende às minhas relações com os outros animais que me cercam, como homens, por exemplo. Como me prendem, como eu prendo, por que prendo, por que me deixo prender.

Outro dia fui plantar a minha lua( prática que consistem em enterrar o sangue menstrual, devolvendo o poder de reprodução para a mãe terra, além de ser um ótimo adubo para plantas) na rua, regando as plantas que eu e minha mãe desejamos fazer brotar em flores ao pé do muro. Pagu por todo o caminho me seguiu saltitando, a felicidade e o amor incondicional brotaram em mim, pois dentro da liberdade de ir e vir, Pagu escolheu ficar ao meu lado. Assim deveria ser o amor sempre... assim como colonizamos os bichos, colonizamos nossos afetos.

Todos nós temos o direito de ir e de ficar, todos amamos e deixamos de amar ou amamos muito, mas não conseguimos ficar... Mas não entendemos quando isso vem do outro ou fazemos de tudo, desrespeitamo-nos em gostos e vontade, dizemos sim, querendo dizer não , para fazer com o que o outro fique, porque há medo de perder... De onde ele vem? A partida do outro seria estar apenas consigo, sem poder se diluir no outro e sem poder terceirizar a sua reponsabilidade por si? A partida do outro dói, o que há de pior em doer? Às vezes não amamos a companhia , mas ficamos , será que por conforto, por não querer perder o controle de tudo que o que achamos que temos? Achamos, pois o outro não nos pertence. Amar o outro não é estável , porque o outro é uma outra dimensão, assim como você é um outro universo.

Antigamente o jogo era muito mais injusto para as mulheres, não havia tantas possibilidade, então sua função basicamente ela se diluir em um e depois procriar outros meios de diluição, fugindo-se de si ao máximo, já que o “si” não importava para o mundo. Mas o “si” silenciado ganhou forças pelas que não souberam calar ao longo da história e hoje a força clitoriana ganha muito mais espaço no mundo, há um número gigantesco de possibilidades. Portanto, hoje homens e mulheres possuem possibilidade, visão, oportunidades... Justo que um abra a mãe de si pelo outro sempre? Será? Não seria impossível, bem como já não é, amar de forma livre e respeitosa, lidando com a dor da partida, mas quem sabe se deliciando com a volta espontânea. Cuidar do nós mesmos em busca de um “mim”, como disse Céu em sua Música Amor Pixelado. E se não voltar? Mas será possível que tudo acaba aí, dentre de um universo com uma infinidade de pessoas e personalidade e zilhões de almas gêmeas possíveis, isso não deveria ser um problema.

Isso apenas um estalo de todas as reflexões que a natureza já me possibilitou, a pureza dos cachorros, a presença e individualidade dos gatos, a fotossíntese das plantas e a capacidade de amar livre de todos eles e nossa capacidade exuberante de criação de ‘nóias’ transmitidas até as outras espécies. Mas isso não é uma forma de diminuição de nós, somos o que somos, cada um na sua linhagem animal, é só uma forma de aproximação, pois por razão da Razão, elevamo-nos a um papel muito maior que é tão significante quanto ao todo que vive. Todos aprendendo juntos com todo mundo e nenhuma espécie sem a capacidade de evolução. Assim como individuais, juntos.

Talita OliC
Enviado por Talita OliC em 11/07/2020
Reeditado em 11/07/2020
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