BÓLIDO

Desde que abriu o salão do bilhar, ainda bem cedo, Marculino sentado numa das mesas perto do balcão, foleava o Aurelinho.

- O que é que você tanto procura nesse dicionário? (Perguntou Tota Medrado)

- É um nome que eu ouvi, não sei o que é e nem tem nesse dicionário ruim.

- E que nome é esse?

- Bólido.

- Claro que está aí sim senhor.

- Tá não. Só tem um parecido. Aqui, ó! B o, bo; lê i, li; d o, dó, bolido.

- Oh! Cabra burro, você não está vendo o acento agudo no primeiro ó, não? Isso não é enfeite não. É para se pronunciar a sílaba com mais força do que as outras, jumento tapado.

- Ôxe seu Tota, isso lá é jeito de ensinar? Eu ainda tenho pouca leitura.

- Tem pouca leitura porque é preguiçoso. O colégio tá bem ali no fim da rua. A aula começa as sete, dá tempo de sobra de fechar o bilhar as seis, tomar café e ir para a aula estudar.

- Mas se tiver gente, quem vai atender.

- Eu, como sempre fiz. Se você fosse menos enxerido e não gostasse de se intrometer nas conversas já podia ser até doutor. Eu canso de mandar você para a escola, todo dia Maria lhe diz para se dedicar ao estudo para deixar de ser balconista de bar, que vender cachaça a esses bêbos safados não leva ninguém a lugar nenhum, mas você faz ouvido de mercador para depois ficar se lamentando feito bezerro desmamado. Eu devia dar-lhe uma surra boa para você criar jeito de gente...

- Que é isso Tota? Que foi que Marculino fez dessa vez para levar essa descompostura toda? Eu estava ouvindo lá de fora...

- Graças a deus o senhor chegou seu Olegário. Não vi a hora de seu Tota me quebrar de pau.

- Deixe de ser falador, cabra safado! Eu nunca bati em você.

- Não bateu, mas não perde a oportunidade de me ameaçar.

- Mas o que foi que houve?

- É por causa do meteoro que caiu antes de ontem, que iluminou o céu todo na boquinha da noite. Não sei se o senhor viu.

- Vi sim e é só no que se fala, mas esse meteoro de nadinha não foi de assustar ninguém.

- O senhor já viu meteoro maior do que esse foi seu Olegário?

- Marculino, hoje você não me escapa.

- Deixe o menino Tota, ele gosta de aprender. Eu gosto de ensinar, aí a gente se dá muito bem.

- Mas ele é muito saliente seu Olegário.

- Deixe ele comigo. Sim meu filho, já vi coisa bem mais forte do que esse peido de véia que nem chegou a cair direito.

- Tá aqui, seu Olegário. O conhaque e a cerveja. Agora me conte a história do seu meteoro.

Seu Olegário ajeitou-se na cadeira, tomou de um trago a dose de conhaque e observando o colarinho da cerveja de encontro a luz do sol que se insinuava através da porta mal fechada, como que arrebatado a tempos idos, deu início à narrativa.

- Eu devia ter de catorze para quinze anos e estava aprendendo cutelaria com seu Walfrido, um ferreiro alemão que foi contratado pelo avô do coronel Izinho para fazer as ferraduras dos burros das tropas dele. Homem rigoroso, cumpridor de horários e de serviços nas datas marcadas. Aprendi muito com ele, me tornei também mestre ferreiro e trabalhei no ofício durante muitos anos. Mas meu ideal sempre foi servir nas forças armadas, tanto que depois fui para a guerra. Mas isso é história que já lhe contei.

Pois bem, numa noite estrelada, a lua ainda nem tinha saído, nós estávamos fazendo serão na ferraria, quando ouvimos um assovio longo e um clarão no meio do mundo acompanhado de uma explosão que parecia que o mundo ia se acabar naquele momento. O pessoal na rua correndo, gritando valei-me nossa senhora, o legítimo terror porque derrubou até casa.

Eu já estava na porta da oficina e vi quando o meteoro explodiu e largou pedaços para todo lado. Corri para perto de onde eu tinha visto cair um desses pedaços e ainda bem que eu estava com a tenaz na mão, porque bem na minha frente estava lá um pedaço grande de meteoro, vermelho como se tivesse acabado de sair da forja. Aí eu peguei ele e trouxe correndo para a oficina.

- E o senhor ainda tem o pedaço de meteoro, seu Olegário.

- Não. Na mesma hora, botei o meu achado dentro da forja e danei-lhe o malho naquela noite toda até que consegui fazer uma adaga.

Foi a melhor adaga que alguém já teve na vida.

E ainda bem que eu dei o fio antes dele esfriar, porque até pedra eu quebrava com a adaga e ela nunca envergou nem perdeu o fio. Nunca enferrujou nem nunca precisei amolar porque foi o ferro mais duro que eu vi em toda minha vida.

- E o senhor ainda tem essa adaga, seu Olegário?

- Perdi. Na cheia de 65 o rio levou quando derrubou o paiol na baixada do ingá..., mas ainda hoje sinto falta dela quando tenho um serviço bruto para fazer...

GLOSSÁRIO:

Aurelinho – versão escolar do dicionário de Aurélio Buarque de Holanda

Bezerro desmamado – agitação e mugidos frequentes de bezerros quando separado da vaca mãe

Leitura – conhecimento, no contexto

Ouvido de mercador = ouvidos moucos

Peido de véia – fogo de artifício explosivo de baixa potência