O BOLETIM DO DUDUZINHO
Causo de veracidade verdadeira

 



       A reunião pedagógica já ia avançada quando irrompeu sala adentro uma senhora enorme em passos decididos, cara de poucos amigos. Trazia o pequeno Eduardo, o filho, a reboque da saia. A entrada intempestiva, sem pedir licença, já parecia prenunciar confusão.

       — Você é o professor Afonso, de inglês? – Intimou em tom hostil.

       — Sim, sou eu. Algum problema?

       A invasora me lançou um olhar mortífero! Não me respondeu. Eita! Me deu um calafrio na base da nuca. Em seguida, enquanto revolvia a miscelânea de objetos que só uma mulher consegue guardar e entender dentro de sua própria bolsa, ela dirigia olhares aos outros pais sentados, fazendo um leve assentimento com a cabeça como se tal coisa que viesse a extrair dali pudesse justificar a sua falta de educação.

       Depois de alguns segundos de mãos nervosas em busca de uma prova inquestionável para me destruir, a mulher finalmente apresentou a todos um boletim. Fez questão de ostentar uma fisionomia vitoriosa.

      — Aqui está! – Disse apontando a cadernetinha de notas de encontro a mim, pouco não faltando para me esfregá-la na cara. – Eu quero saber o que é que é isso aqui!

      — Calma! Tenha calma, minha senhora! Vamos conversar. – Defendi-me sem saber da acusação, mas desconfiava que toda aquela revolta só podia se relacionar com as notas de inglês do Eduardo.

      — Eu quero saber o que é que é isso aqui! Quero sim! O que é que é isso aqui! – Vociferava indignada agitando o boletim como uma espada pronta a me furar. Parecia um siri preso na lata.


       — Me dê licença. – Esforcei um sorriso amarelo sem graça para me aproximar. Tomei a prova de acusação da mão dela, mas não sem antes dar uma olhada rápida no menino que se escondia de vergonha por sobre as dobras da saia daquela criatura em desatino. Pobre criança!

       — Hoje de manhã pedi pra minha comadre pegar o boletim pra mim porque eu não podia vir. Tava trabalhando, tá? Agora, eu quero saber o que é que é isso aí!

      — Deixe-me ver. – Disse em tom conciliatório, observando-a no bater nervoso de pé nos tacos da sala enquanto que, ao mesmo tempo, de braços cruzados, expressava uma cara impaciente como quem dizia: “anda logo que eu não tenho o dia todo”.

       Dei uma boa olhada no boletim do guri prestando atenção se não fora cometido algum erro por parte da secretária ao passar a nota de inglês para o documento.
       
       — Senhora, o seu filho tirou nove em inglês. Eu não sei o motivo de todo esse estresse.

     — É claro que o “senhor” não sabe. Você não olhou direito o boletim dele, tá?

       — É mesmo? E como é que eu devo olhar o boletim dele, então? – Disse já ficando impaciente também, inflando o peito altivamente para obrigá-la a considerar a coragem de um guerreiro pronto para o combate.

       A bravura foi por pouco tempo.

      Ela semicerrou os olhos de um jeito maligno, me deu medo. Capitulei na hora! Parecia uma leoa faminta pronta para dar o bote e estraçalhar a presa.

       — Você teve a coragem de botar uma falta no bimestre para o meu Duduzinho!

      Voltei os olhos novamente para o boletim. Realmente havia uma única falta em todo o bimestre registrada por mim. Antes de sequer esboçar um arremedo qualquer de explicação, ela deu um passo à frente e colocou o dedo ameaçador em riste próximo do meu nariz.

       — O que significa isso, hein? Meu filho nunca faltou, se você quer saber. E não venha me dizer que ele anda cabulando aula porque eu trago o Duduzinho pra escola todos os dias.

       — Bom, eu...

       — O Duduzinho é um menino que nunca falta a aula, a não ser por motivo de doença. E tem que ser doença grave pra ele deixar de vir! Como você explica isso?

       — Bem... posso ter-me enganado na hora de fazer a chamada. Sou um ser humano sujeito a erros como qualquer outro.

       Assustado, fui até a mesa. Peguei a minha pasta e retirei um dos diários. Levei o documento de controle de faltas para junto dela. Abri em frente da déspota.

       — Veja, aqui está a relação de alunos da sala do Eduardo. Pode ver, são trinta e dois no total! Cada nome corresponde a uma destas linhas quadriculadas onde nós controlamos a frequência de todos. Olhe bem como as linhas quadriculadas são fininhas, muito próximas umas das outras. Pode acontecer, na pressa, a gente misturar os nomes na hora da chamada. Daí acaba-se colocando uma ou outra falta para alguém que na verdade não faltou e presenciar alguém que possa ter faltado.

       — Mas isto é uma irresponsabilidade! – Decretou a infeliz para o meu desespero. - Quer dizer que o meu filho levou uma falta que deveria ser de outro?

      — Sim... não... sim... mas é um pequeno erro! De modo algum vai influenciar o bom desempenho do garoto. Do jeito que a senhora vê a situação parece mais importante o Eduardo comparecer todos os dias do que ele aprender a disciplina.

       — Mas ele não costuma faltar aula não, tá?

      — Tudo bem, se você diz que ele não falta... ele não falta. Pronto!

      — Não é eu que estou dizendo que ele não falta, professor, ele não falta mesmo, tá?

    — Sim, sim, sim. Longe de mim prejudicar a frequência de qualquer aluno. O Eduardo não faltou. Vou falar com a secretária para providenciar a correção do meu equívoco, ok? Tá certo?

      A fisionomia da medusa se abrandou um pouco, ainda assim me lançava um olhar desconfiado de quem achava estar sendo enganada na conversa.

       — Óóóóra essa! o Duduzinho não é de faltar a escola não, tão pensando o quê? – Falou em voz embargada de emoção, voltando-se para os outros pais tão aparvalhados quanto eu.

       — Bom... tudo bem... você arruma a falta do meu menino, sim? – Disse-me em tom de paz.

       A mulher finalmente se acalmou!

       Ôôô glória! Ôôô pai!

       Depois da tempestade sempre vem a bonança.

       A criatura, de repente, parecia ser uma outra pessoa. Os ombros altivos e nervosos relaxaram um pouco. A fisionomia manifestou uma expressão de suavidade, fazendo-me serenar as ideias também. Olha, a gorgona ficou até bonita!

       Depois do desabafo, se recompôs. Enxugou as lágrimas que lhe caiam discretas pelo rosto, tomou a mão do filho demonstrando a intenção de ir-se, graças ao bom Deus, embora.

      De minha parte, considerando o incidente, já ia dar por encerrada a reunião quando ela chegou a porta e lá emperrou por um breve momento pensativa. Bah! Meus cabelos da nuca, de novo, se arrepiaram semelhantes os pelos de um gato quando se vê na obrigação de tomar banho. “Oh, minha virgem santíssima, o que será agora? ”
       
       Eita! No momento em que se voltou, o rosto da medusa já estava transfigurado novamente pela sede de vingança! Suas sobrancelhas contraíram-se emolduradas numa carranca grotesca. Os olhos malignos esbugalhados caíram sobre mim. Devo ter diminuído de tamanho, quando aquele dedo inquisidor se levantou apontando em minha direção.

       Meu coração quase saltou pela boca!

      — Que isto não se repita! Você fica avisado, tá? – Ameaçou em tom grave, logo se retirando para o pátio do recreio.

     Três dias depois, o Eduardo foi transferido para outra escola próxima do mesmo bairro. Hoje, depois de tantos anos, ainda fico remoendo o pensamento com pena do “Duduzinho” que talvez, e nunca vou saber, tenha sido afastado de seus amigos de turma por causa de um simples “F” mal colocado em meu diário.

       Vou ter de conviver com isso para o resto da vida, tá?



 




 
Este episódio aconteceu de fato quando eu começei minha carreira de professor de inglês no ensino fundamental. Inexperiente em lidar com as mães estrassadas, passei algum sufoco. 
Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 25/09/2020
Reeditado em 30/11/2020
Código do texto: T7072427
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