Idéia fixa

IDÉIA FIXA

Miguel Carqueija

 

— Você precisa se interessar mais por leituras — dizia a garota ao namorado. — A leitura enobrece, educa, dá sentido à existência. Olha só para mim: estou sempre com um livro na mão.

— É, estou vendo — disse ele, olhando a capa do livrinho de bolso na mão dela: A TERRÍVEL AMEAÇA DOS ROBÔS DE MARTE.

— Se você não quer ser um cabeça-ôca — continuou ela — trate de ler, ler, ler. Preferentemente ficção científica, é claro.

— Mudando de assunto, querida, vamos ao cinema?

— Ver o que? O Alien? O Robocop?

— Por que é que a gente não assiste um filme romântico e normal?

— Francamente, Júnior! Você às vezes me chateia!

— Está bem, desculpe! Mas qual é o filme de ficção científica que você não assistiu uns dois milhões de vezes?

Ela adquiriu um ar sonhador.

— Eu queria muito assistir “Aélita”...

— O que?

— Aélita, seu bobo. A Rainha de Marte. Um filme russo de 1924. Uma raridade. Feito por Yakov Protazanov...

— Como é que você conseguiu decorar esse nome?

— É só uma questão de interesse...

Lucíola olhava-o com certa impaciência. E ele, ao olhá-la, ficava imaginando umas anteninhas em sua cabeça. Certa vez ela o chamara para o terraço do prédio, para fazer observação de discos voadores.

— Bem, cineasta eu só conheço mesmo o Spielberg... e olhe lá...

— É mesmo? — ela parou um instante, sem se decidir a atravessar a Rua das laranjeiras. — E o Roger Corman, ao menos, você conhece?

— Nunca ouvi falar.

— Nem do George Pal?

— George o que? Puxa, esse deve ter sido terrível, pelo nome...

— Parei com você, Júnior! Estou chegando à conclusão de que não temos nada em comum!

— Espere aí, meu bem, eu...

— Que meu bem o que! Você é muito criança para o meu gosto! Tchau!

Atravessou rapidamente aproveitando o sinal fechado. Ele foi atrás, aflito. Ao chegar porém no outro lado da rua ela se voltou com decisão:

— E não me siga!

Ele não ousou. E logo ela se perdeu na multidão.

 

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O que fazer com o sábado livre e sem namorado? Lucíola guardou raivosamente o livro na sua bolsa e pensou: ir ao Jardim Botânico conversar com as árvores? Quem sabe ir ao Corcovado e, lá do alto, tentar avistar um disco voador? Ir à biblioteca pesquisar livros de Ufologia? Voltar para casa e assistir o vídeo “Solar crisis”?

Acabou indo ao Rio Sul pois gostava das lanchonetes de lá, apesar do preço. E lá, com um sanduíche elaborado e um suco, pôs-se a tentar ordenar os pensamentos que fervilhavam.

Abriu o seu caderno de desenhos e pôs-se a traçar alguns ET’s e Aliens.

— Eis aí uma bela idéia. Agora só faltam as cores...

— Perdão, posso saber o que é isso aí?

Ela se voltou e deu de cara com um rapaz não muito jovem, que olhava espantado para o desenho da ET (uma garota do Planeta Zump, desenho por Lucíola Cardim).

— Oh, é apenas um desenho de ET — disse ela.

— Que interessante! De onde foi que você tirou essa idéia?

— Da minha cabeça; Eu gosto de ET’s.

— Eu também. É um dos meus assuntos favoritos.

— Não acredito. Isso aí, só se você me provar.

Ela não aceitava cantadas fáceis.

— Isso é fácil provar. Eu posso sentar um pouco?

—À vontade.

Uma vez instalado ele pôs-se a explanar:

— Como você deve saber, esse assunto é riquíssimo. Por exemplo, existe uma espécie de arqueologia ufológica. É o estudo das possíveis incursões de ET’s no passado histórico da Terra ou mesmo no pré-histórico. Existem os estudos sobre as observações atuais desde a II Guerra Mundial, e também os esforços da radioastronomia em identificar civilizações no espaço profundo. Existem as teorias sobre as outras dimensões, mundos paralelos, universos alternativos, universos escalonados... você já pensou, por exemplo, na possibilidade de existirem habitantes nos átomos?

Ela começou a se sentir fascinada.

— Nos átomos? Não, nunca pensei nisso. Como poderia ser?

— Admira-me que você já não conhecesse essa falácia da ficção científica. Imagine por um instante o mundo atômico com suas inúmeras partículas, inclusive as teóricas. A grosso modo você pode considerar o núcleo — com seus prótrons e neutrons — como um sol, em torno do qual giram vertiginosamente planetas e cometas — os elétrons. Os habitantes dos elétrons, portanto, somos nós também, sendo a Terra um elétron girando em torno de um núcleo ao qual chamamos Sol.

— Espere! Estou começando a compreender! — Lucíola estava excitada. — Mas existem algumas falhas nessa teoria...

— Aponte-as.

— Bem. O tempo... como é que é o tempo nesse mundo atômico? É tudo tão rápido por lá!

— Justo. O tempo é relativo e lá, é claro, passa mais rápido em relação a nós. Por outro lado você pode considerar um universo de escala superior à nossa. Nesse universo escalonado superior as coisas se passariam, em relação a nós, com uma lentidão inacreditável.

— E isso prossegue sempre... para cima e para baixo?

— A expressão certa seria “para maior” ou “para menor”.

— Um momento! Todos esses universos têm realmente o mesmo tamanho... ocupam o mesmo espaço...

— Sim. Você é inteligente. E eles têm todos a mesma matéria. Apesar de tudo, são fechados entre si. Em princípio você não passa de um para outro.

— E se passar, suponho que as consequências sejam terríveis...

— É, porque o tempo psicológico passa de maneira diferente em cada escala. Além do mais se você for transportada para um universo de outra escala seu corpo aumentará ou encolherá, e aí arrastará nessa mudança todas as escalas infinitas contidas no seu corpo...

— Como é que é?

— Os mundos existentes no seu corpo — sistemas de átomos e moléculas — também pularão de escala.

— Agora eu me lembro que já li qualquer coisa sobre isso... aquele F. Richard-Bessière...

— Você deve estar se referindo ao romance “Bang!”, publicado no Brasil com o título de “O homem eterno”.

— Na série Futurâmica da Tecnoprint. Um título bobo, por sinal. Mas fale mais.

— Basicamente é isso, nessa falácia...

— Qual é o seu nome? Ainda não me disse.

— Josué. Um nome de ressonância astronômica.

— Eu sei. O Josué bíblico fez parar o Sol.

— E você é a Lucíola.

— Como é que você sabe?

— Está no seu desenho de ET.

Ela riu.

— Ah, sim! Tinha esquecido que você olhou.

Lucíola é um romance de José de Alencar.

— Que eu nem li. Um dia vou ler. Não é prioridade. Não é ficção científica.

— E o que você está lendo agora?

— Um monte de livros. Esse aqui... terminei “A nuvem negra”, do Fred Hoyle... ah, o Hoyle! Ele é um cientista fantástico. Você conhece a teoria dele, da contínua criação de matéria?

— Não, isso eu não conheço... o nome dele eu sei que é conhecido...

— Ele se opõe à relatividade.

— Desculpe, não vai terminar o seu suco?

— Ah, é mesmo! Esquecia-me... e você, não vai tomar nada?

— Eu lanchei ainda agora. O que você pretende fazer?

— Eu não sabia ao certo, até há pouco.

— Não sabia ao certo? E agora já sabe?

— É claro que sei. Vou levar você na minha casa.

— O que?

— É claro. Você vai adorar minha mãe. Lá você vai assistir “Solar crisis” comigo e vai me contar tudo sobre você. Não percebe que você e eu respiramos a mesma atmosfera?

— Apesar da maneira um tanto ou quanto insólita, a verdade é que um verdadeiro fã de ficção científica não se espanta com nada. Portanto, querida, a resposta é “sim”.

Lucíola sorriu. Um presente do Céu, sem dúvida. Até que enfim encontrara alguém para partilhar com ela as noites no terraço, à procura de UFOS. Finalmente o futuro parecia sorrir, prometendo-lhe muito amor, compreensão e ficção científica...

 

Rio de Janeiro, 26 de abril a 17 de maio de 1995.


A imagem é do desenho no meu caderno onde encontrei este conto esquecido. 

Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 19/11/2021
Código do texto: T7389544
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