A BELA DA TARDE

Extraído do livro do autor “Tute – Brincadeiras de papel”

Ela passava em frente à casa do menino quase todos os dias, exceto nos finais de semana, sempre por volta das quatro horas da tarde. Era o seu trajeto obrigatório pela pequena rua para acessar a avenida principal. Nunca notara que havia alguém no portão ou mesmo no jardim a observando. Caminhava elegantemente com passos firmes e absolutos sobre os pares de sapatos altos e saia curta, invariavelmente o mesmo modelo, marcando os quadris, gostoso de vislumbrar. Outras características, muito bem maquiada, séria e concentrada com semblante altivo, direcionado à frente, sem ao menos olhar para um dos lados, como uma exuberante modelo na passarela, até dobrar a esquina e desaparecer da visão do observador.

O garoto, mesmo ainda na puberdade, teve sua percepção despertada como um sentimento novo, uma emoção inexplicável, já podia sentir que ela era uma mulher que irradiava algo a mais que as suas vizinhas — jovem, bonita, bem cuidada e atraente — bem diferente das mulheres daquela rua, simples donas de casa, bonitas apenas. Suas idas ao portão no horário determinado tornaram-se rotina. Era só ela passar e o rastro do perfume exalando sensualidade podia ser aspirado, aguçando a curiosidade deixando um indelével prazer. Por vezes a espera era em vão, desapontando o, as ausências dela o frustrava.

Essas investidas o deixavam eufórico, pretendia que ao menos uma vez ela o notasse, e que ofertasse um sorriso. Passara a ter sonhos constantes excitantes com a bela mulher. Numa noite sonhara que ela passava vestida de branco, dentro de uma carruagem florida, puxada por dois cavalos marrons, olhava para ele e com as mãos espalmadas lhe mandava um beijo. Passado um longo período com sonhos em profusão, ele se cansa de ser um mero sonhador e admirador anônimo, toma uma atitude, decide segui-la então.

Numa tarde aguarda ansioso aquela linda mulher, assim que ela passa ele cautelosamente sai da casa e a segue discretamente a uma distância segura até chegar à avenida. Pode observar que na esquina um automóvel a esperava. Sem olhar para os lados, a mulher entra apressadamente no veículo e este arranca deixando a curiosidade para trás.

Nessa tarde o menino, ainda com um ponto de interrogação sobre a cabeça, fica na calçada jogando bolinhas de gude até escurecer. Enquanto brinca com os amigos pode ver a mulher voltando do passeio. Descobre então que nunca notara o horário de volta da beldade, fora esta a primeira vez.

No dia seguinte, como já era corriqueiro, ele fica de prontidão aguardando a passagem da moca bonita, sem arredar pé do lugar. Assim que ela passa discretamente a segue. A cena da tarde anterior se repete, ela entra no carro deixando uma vez mais o mistério ali na esquina. Então ele decide que ficará esperando por ela como fizera da última vez. Ele fica até altas horas à espera da mulher que teima em não aparecer. Frustrado, sentindo na alma um vazio insuportável, não consegue conciliar o sono. Inexplicavelmente a ausência daquela estranha o incomodava, como se tivesse uma perda irreparável, mas afinal era apenas uma desconhecida. Sequer sabia o nome de tão bela e encantadora criatura, apenas tinha o conhecimento que ela morava no fim da rua.

Amanhece e ele não tem disposição para ir à aula, estava atordoado, uma sensação estranha de uma perda avassaladora.

Aproveitando a folga forçada pega o jornal do pai e se depara com a foto daquela mulher em destaque na primeira página com a manchete em letras garrafais: “A BELA DA TARDE”, e logo abaixo — “Crime passional, marido traído executou na tarde de ontem mulher e amante na saída de motel.”

Samuel De Leonardo (Tute)
Enviado por Samuel De Leonardo (Tute) em 20/06/2022
Código do texto: T7542178
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