PECADOS...POR AMOR

PECADOS...POR AMOR

I

Célia nasceu no seio de uma família numerosa e não de parcos rendimentos, mas também não exagerados. Os pais tinham salários médios. Ambos, funcionários públicos, o pai trabalhava nos escritórios da empresa de distribuição das águas, vulgo serviços municipalizados de águas e saneamento e a mãe era telefonista na recepção de uma escola secundária. Os filhos nasciam a um ritmo acelerado e Célia, o quarto filho em cinco anos de casamento, a deixar antever que as coisas não parariam por aí, deixaria o casal algo manietado. Aos dois anos de idade e com a mãe novamente grávida, de adiantada gravidez, a avó materna pediria ao casal que deixassem a netinha ir uns dias até à casa da vóvó, como dizia a pequena criança nos primeiros acordes linguísticos e sempre que recebia carinho da avó Zulmira. A sugestão seria aceite e ao fim de uns dias de estada, a pequenita não mais manifestaria saudade ou até vontade de regressar à casa dos pais. Na casa paterna o carinho e todos os mimos eram distribuídos equitativamente pelos outros três irmãos mais velhos e num futuro, por mais aquele que brevemente virá à luz do dia. Na avó, todo o carinho e atenção era canalizado só para ela, o que a levaria a tornar-se egoísta e sequiosa dos mesmos. Confirmando a “cultura” instalada na sociedade e que diz que netos são duas vezes filhos, Zulmira não se evadia de atenções à pequena Célia, a qual se foi criando e educando num conceito de protecção e cuidado extremo. Aos dois anos de idade e com a prole já aumentada com o nascimento de outro bebé, o quinto em sete anos, Zulmira viria a ter conversa com a filha no sentido de pôr algum travão na crescente onda de nascimentos.

- Rapariga, já é tempo de parares de ter filhos. Que diabo, sou mulher de outros “tempos” e só te tive a ti e a teu irmão, que Deus haja em boa graça. Tens trinta anos e neste andar quando chegares à minha idade não fazes por menos de quinze filhos, sim, mas também demais é escravidão. Se o teu homem não tem cuidado, ao menos bota tu cuidado…No meu tempo não havia nada do que há hoje e não fizemos filhos à toa. Éramos responsáveis. Nem pareces uma mulher deste tempo. Teu pai era bem afoito e não me encheu de filharada. Que diabo, podes “brincar” na mesma, sem fazer filhos. Só tu não és capaz!!! Olha as moças do teu tempo. Nenhuma tem mais de três filhos e estas contam-se pelos dedos. Isso já é sinal de “atraso”. Nem pareces deste mundo. Faz como as outras. Elas vão aos centros de saúde e tomam conselho com médicos especializados em planeamento familiar.

- Minha mãe, sei de tudo isso. Eu não sou a ignorante que você está a pensar. Os filhos que faço, que fazemos, não é por ignorância, é por amor, é por vontade própria e do meu marido.

- Seja, mas que diabo, só vós é que fazeis por amor? Os outros também fazem por amor, que pensas tu?

- Eu terei os filhos que quiser e ninguém mandará em mim. Que me importa o que você pensa ou os demais… eu se não quisesse ter filhos, teria feito por isso, mas o meu prazer é encher a casa de filhos e meu marido alinha também. Não adianta falar, que nada mudará. Disse-me que os filhos trazem pobreza à casa. Eu conheço famílias sem filhos e com poucos filhos e cuja pobreza deles não é material mas de amor, o que para mim é bem mais grave. Eu decidi ser rica e não pobre. O meu conceito de pobreza e riqueza é diferente do seu e dos demais. Nada a fazer…

Este diálogo terminaria assim, com a certeza e convicção de que os nascimentos não estariam para parar. Zulmira, reflectidamente, perguntava-se: porque me meti nestas coisas se na verdade, nada melhor do que o casal para definir o que quer para si? Esta coisa dos pais se julgarem toda a vida conselheiros dos filhos, não faz qualquer sentido. Errei. Noutra hora pedirei desculpa à minha filha por lhe querer travar o nascimento de “netos”.

Seja como for, a pequena Célia está a leste destas conversas ou decisões conjugais. Zulmira sente que a netinha não mais quer regressar à casa dos pais a não ser por passeio e os pais, por sua vez, também sentem o desejo da avó em tê-la consigo, como companhia. Zulmira ainda é relativamente nova e de bom aspecto físico e aparente boa saúde. Cinquenta e cinco anos, ou primaveras, como ela costumava dizer quando lhe perguntavam a idade, faria supor menos idade, tal o fulgor e boa aparência. Nunca teve emprego e todo o tempo foi dedicado ao marido e filhos e às lides domésticas e suas rotinas, que fazia com esmerado zelo e higiene. Óptima cozinheira, que o marido, Adérito, não se cansava de elogiar, era também o orgulho dele. Ele, mais velho seis anos e quase próximo da aposentação definitiva, trabalhou como fiel de armazém numa empresa do ramo de electricidade. De momento a gozar a pré-reforma, empresta os tempos livres a conduzir a carrinha de transporte de crianças para o infantário, o que faz com especial prazer, não só porque a netinha também faz parte, mas por se achar útil e com obrigação de prestação cívica à comunidade. O único filho, Hélder, morreria num acidente de viação, solteiro e sem deixar filhos. A pequena Célia ajudaria a preencher esse vazio, que abruptamente cairia na casa no ano do casamento da filha, Cândida.

A pequena menina viria a frequentar o Infantário da Torre, assim designado por o edifício ter uma torre encastrada na construção e cuja data remonta ao início do século XIV, sendo que é o que resta da antiga construção. Posterior e provavelmente no início do século XVII, viria a ser construída a edificação que recentemente receberia acentuadas melhorias O belo edifício agora restaurado e depois de longas décadas de continuada degradação, viria a ser adquirido por quem felizmente teve sensibilidade, engenho, arte, visão e muito dinheiro. O passado de abandono foi o resultado último de três gerações em desavença de herdeiros, até que por fim alguém teria o bom-senso de dizer “basta” à degradação a olhos vistos daquele que em tempos teria sido o orgulho da família Matos Andrade, fundadores da dita casa senhorial e que durante quase três séculos pontificaria como referência de casa de trabalho e generosidade para com populações de mendigos que a procuravam para matar a fome. Durante grande parte desse período a Casa da Torre foi passando de mão em mão por varonia, do que resultaria positivamente a consolidação patrimonial e o seu bom-nome. Findo este período, as “guerras” de herdeiros poriam fim aos direitos de varão e passariam a habilitar todos os herdeiros e por consequência, o avizinhar do final do palacete. As próximas três gerações não se entenderiam, do que resultaria farta degradação de telhados, forros de madeira tão característicos e janelas e vidraças apodrecidas ou partidas em jogos de pedrada ou fisgada que os rapazotes mais espigados faziam para “testar” pontaria. Era este o cenário último da Casa da Torre e cujo novo inquilino haveria de comprar, depois de satisfeitos os herdeiros habilitados. Em dois anos de obras contínuas, a Casa da Torre restabeleceria muito do seu aspecto primitivo, sendo que dos palheiros, estábulos e adegas, faria adaptação para instalações comunitárias. Nasceria assim, o infantário da Torre, como era conhecido pelas pessoas ou o infantário Tio Patinhas, conforme designação social e que as crianças gostavam de chamar. Foi pois neste edifício reconstruído que, Célia daria os primeiros passos na aprendizagem e onde se manteve até aos cinco anos. Seguidamente, frequentaria a escola do ensino básico. Este infantário havia celebrado contrato de concessão em parceria mista com docentes especializados na área do pré-escolar, com a fábrica da igreja e autarquia local. Estas sinergias projectariam o bom-nome e prestígio ao infantário, de modo que se tornou muito procurado por encarregados de educação para lá colocarem filhos. O sábado era um dia preenchido com actividades extra curriculares: de manhã, desporto e de tarde, catequese. Quer um, quer outro, eram ministradas por pessoas habilitadas, sendo que a catequese tinha acompanhamento por freiras que também leccionavam por terem competências na área do ensino.

A avó Zulmira, mulher pouco de igreja antes do falecimento do filho, encontraria nesta, reformulação de fé através das palavras conformadoras do padre Acácio, homem mais que sexagenário, de cabelos grisalhos e mal cuidados, resultantes se exagerada simplicidade de modos que não de inteligência. Consta que no seu tempo de seminarista seria um dos seus mais brilhantes alunos, no dizer do seu contemporâneo, Dr. Marcos Ribeiro, também este médico do dito padre.

As palavras saídas da boca do presbítero, sempre sensatas e bem intencionadas, já teriam conformado muitas viúvas, pais e filhos perante a perda de familiares próximos. Zulmira não se cansaria de elogiar a força das palavras recebidas e que muito a ajudariam a vencer a ausência prematura do filho, bem como a alterar o rumo da fé e a reforçar esta. Esta nova postura viria a ter reflexos na educação da pequena Célia ao contrário do que antes se suporia, se tais factos não tivessem ocorrido. A formação religiosa viria a ter contornos de exagerada beatice e obstinação fundamentalista por parte da avó e motivo de reparo público, que a levaria a preocupar-se mais com a assimilação das orações constantes do catecismo, do que pela formação académica da neta. E a verdade, é que a menina parecia sentir-se contagiada pelo entusiasmo da avó, correspondendo-lhe a preceito. Tão novita e já papagueava o Credo e a Ave-maria com inusitada destreza e confiança que a avó fazia garbo, não raro, pedindo-lhe para publicamente revelar essa “habilidade”. E o certo, é que Célia o dizia bem e altíssono, notando-se que a avó a acompanhava em movimentos labiais e imperceptível voz. No final, surgiriam os esperados elogios, os quais deixariam mais ufana a avó, que a neta. Com esta educação religiosa de proximidade, não admiraria que Célia crescesse com fé encaminhada, orientada. Um dos pormenores que fazia crer na consolidação da aprendizagem e reforço de fé, era o gosto que a menina viria a criar pelas figuras estampadas de santos e personagens bíblicos. Na verdade, ela fazia colecção de imagens, tal como os rapazes o faziam com os cromos de jogadores de futebol. Mais crescida, a ambição coleccionista aumentaria e a colecção de estampas ficaria para trás dando lugar a estatuetas de figuras bíblicas e de santos. Aos dez anos compraria com as moedas que foi juntando na latinha que outrora fora das salsichas e agora viraria mealheiro, a primeira estatueta de Cristo. Daí até comprar a figura de José e Maria, seria um ápice. Seguir-se-iam apóstolos e santos “principais”. O seu quarto em pouco tempo mais parecia um espaço expositor de motivos religiosos do que o lugar de privacidade e descanso. Enfim, manias como quaisquer outras que resultaram da educação que recebera na altura da sua formação ética e de personalidade. O futuro confirmaria uma jovem com “desmesurada” fé, centralizando-a principalmente na figura universal de Cristo. Aos quinze anos já era possuidora das mais variadas estatuetas de Cristo, umas mais clássicas, outras mais vanguardistas que zelosamente, cuidava e tratava. Havia entre elas uma muito especial que havia adquirido numa casa de venda de artigos religiosos. Tão especial era que, a perfumava e beijava com tanto carinho quando na solidão e privacidade do seu quarto. Esta exteriorização de apreço por vezes deixava-a de mal consigo mesmo com receio de ter feito pecado. Seja como for, a sua paixão pela figura singular e central da igreja também se revestia de aspectos extra religiosos, quiçá por pensar que gostaria de ter um namorado parecido com aquela imagem que nos é trazida através dos séculos. Achava-o homem bonito a que dificilmente, resistiria ao charme de um jovem que lhe fosse sósia. Nas suas orações mais íntimas rogava para si namorado que pudesse dar-lhe tão grande paixão mundana quanto a que tinha pela figura de Cristo. Esse segredo nunca o confessaria a ninguém por achar que poderia ser reprimida nos seus gostos. Já jovem de dezoito anos, a avó Zulmira interpelou-a acerca de namorados.

- Célia, nunca te vi com nenhum moço!!! Que se passa contigo? Deves ser quase a única que não namoras!!!

- Avó, namorar, que eu saiba não é obrigatório…

- Lá isso é verdade. Mas, na tua idade…namorar é tão lindo. Olha que eu comecei a namorar com menos idade que tu e queres acreditar que ainda me lembro desse moço e no entanto já passaram quase quarenta anos…e olha que namorámos pouco tempo, mal chegou a três meses, mas foram os três meses mais bonitos da minha vida. Depois nem deu certo e nem eu sei porquê…são coisas…ainda gosto de ouvir pronunciar o nome dele: Vítor Jorge. Ah, e mais…

- Mais, o quê, avó?

- Já que estás curiosa, vou contar-te a sensação que ficou mesmo depois de ter acabado o namoro e que irá morrer comigo, apesar de eu gostar do teu avô Adérito. Sabes, a primeira paixão não tem medida nem palavras para a definir. É incomensurável o prazer que nos deixa para sempre. Tudo nela é tão lindo quando na verdade e racionalmente, nada passa de normal. Não sei explicar… só vivendo é que se percebe…É pois por estares na idade mais bonita que te pergunto como estás de namorado e só isso, além da pequena curiosidade de avó. A minha experiência diz-me que não poderia ficar indiferente ao teu crescimento como mulher e principalmente, por seres jovem. Atende ao que te digo: a vida é a soma de várias viagens e a juventude é apenas a viagem mais curta e mais bonita. Só tem ida. Não há retorno. Nunca mais seremos capazes de reinventar nova juventude. Estas palavras poderiam ser ditas por qualquer outra pessoa, mas quero que saibas que é a tua avó e amiga, a dizer-tas.

- Está, avó. Eu acredito e confio na bondade das suas palavras amigas, mas tudo tem um tempo. O meu, ainda não terá chegado, avó, só isso…

- Que te falta? Há por aí tantos moços lindos…também te digo: os moços de agora até parecem mais bonitos do que no meu tempo de jovem. Cuidam-se melhor, no aspecto visual e físico. Onde é que no meu tempo se viam moços altos, loiros, corpos bem delineados, olhos azuis…Fosse eu agora jovem…

- Isso, não sei. Não vivi no seu tempo de jovem para confirmar o que acaba de dizer.

- Mas, sei eu… O que te disse para os rapazes, também se aplica às moças. Elas agora também sabem produzir-se. Que pensas, a tua mãe nunca andou tão arranjadinha como tu…

- Outros tempos, avó…

A interpelação da avó terminaria sem que soubesse se haveria alguém na rota afectiva da neta. Do que se sabe, é que Célia tem na figura de Cristo um ícone, quiçá, menos religioso e mais mundano.

O diálogo de avó e neta não seria ignorado por Célia, particularmente, quando a avó dissertou acerca da vida e a metaforizou, dizendo-lhe: a vida é a soma de várias viagens e a juventude é apenas a mais curta e bonita, com ida e sem regresso.

Sobre estas palavras de sensibilização e advertência da avó, se debruçaria reflectidamente a neta. Na sequência, viria a dar orientação diferente aos tempos de lazer sem perder de vista a sua conduta religiosa. Antes, providenciaria conciliação. A outrora moça “caseira”, viria a dar lugar a uma jovem sequiosa de vivência e intervenção activa e participativa nos diversos eventos de lazer e ocupação de tempos livres. Deste modo viria a inscrever-se na Banda Filarmónica, no Grupo de Teatro Amador e no Grupo Coral. As múltiplas vivências trá-la-iam entusiasmada e uma avó feliz. Do que se passaria em cada uma das actividades, contaria em casa, ao pormenor. Na Filarmónica iniciar-se-ia pela aprendizagem de instrumento de sopro, nomeadamente, flauta doce para em fase mais avançada passar para a flauta transversal, reconhecida por melhor expressão, timbre e volume sonoro. Ao fim de uma semana já sabia tocar os “Parabéns”, o que deixaria os avós e mais particularmente, a avó Zulmira, feliz pela celeridade da aprendizagem. No Grupo Coral, a voz de falsete seria aproveitada para fazer os sons agudos, o que diga-se, o fazia com maestria. No Grupo de Teatro, revelar-se-ia com aptidão para diversos papeis, embora se viesse a notar particularmente, no género dramático. Apetece dizer que, um talento interessante se escondia na inércia e na vida recatada vivida pela jovem e que a avó, graças a uma conversa informal e cuidada, nem ela saberia ou anteveria a repercussão produzida na mente da neta. Doravante, nada seria igual ao passado recente. E, não seria, não só porque o seu estilo de vida sofreria mutação, mas também porque o sonho de Célia, o sonho que ela guarda intimamente, o sonho mais fechado que no seu coração se guarda e deseja, parece ter em Leandro, o encenador teatral, o homem que subconscientemente cada uma das estatuetas de Cristo, simboliza.

Leandro é mais velho que Célia, dez anos. Cursou teatro e agora exerce a profissão de encenador no Grupo de Teatro Ri-Sempre, depois de ter tido outras experiências profissionais noutros grupos de teatro, com mérito reconhecido por profissionais renomados. A sua figura de pessoa, com alguns traços físicos a fazer lembrar a que se conhece das imagens, pinturas ou figuras de Cristo, não deixavam ninguém indiferente e muito particularmente a nova actriz.

Célia, olhava-o com inusitada atenção e perguntava-se se ele, além dos traços fisionómicos, não teria o coração e a alma do líder espiritual da humanidade. Fosse como fosse, as atenções de Célia para com Leandro passariam a merecer outro tipo de atenções, as quais não se isentavam de alguns olhares insinuantes que diga-se, o jovem encenador havia percebido, sem contudo lhe dar grande atenção, outrossim relevando-as.

Leandro, não era propriamente, um jovem inexperiente. Profissionalmente, já havia coadjuvado como encenador no Grupo de Teatro Lugar-ao-Riso, de que era director Tomás Costa, seu grande amigo e mestre de referência, o qual não se poupava a elogios quando dele falava. Digamos que beneficiava de boa formação profissional e exemplar sentido ético. Estes dados assimilados estariam presentes no seu quotidiano profissional e na sua vida de cidadania. A entrada de Leandro no Grupo de Teatro Ri-Sempre aconteceria em consequência da morte prematura e trágica do seu fundador e encenador, o sempre recordado Norberto Lopes, um autodidacta, cujo gosto pelo teatro o levaria a fundar o grupo que lhe daria mais alegrias que tristezas. O nome de Norberto Lopes seria objecto de múltiplas recordações e Leandro, sabendo do prestígio e bom-nome do seu fundador seria um dos que mais estimulava o grupo cénico a optimizar os desempenhos como forma de o homenagear quotidianamente. Esta característica motivadora seria muito apreciada por todos e Célia, mesmo sendo uma recém-chegada, mostrar-se-ia empenhada, quiçá para se valorizar, mas também para se integrar no espírito do grupo. Leandro, no acto de apadrinhamento da novel actriz havia feito discurso de boas-vindas sublinhando o empenho de todos quantos já são presença continuada no projecto iniciado dez anos antes, sem fissuras ou quebras de empenho e interesse, tão próprias dos verdadeiros amadores que se dedicam como se de profissionais se tratassem. Assim espero, dizia, com o olhar objectivamente fixo em Célia para que ela entendesse e intuísse a norma instalada. Os olhos e acenos de cabeça de Célia permitiriam perceber o espírito transmitido e a aceitação tácita e empenhada das regras de conduta que a esperam. No final, Célia seria cumprimentada efusivamente por uns e mais discretamente por outros. Leandro cumprimentá-la-ia com um aperto-de-mão demorado, transmitindo-lhe sensitivamente o calor da recepção e a confiança depositada.

Já perfeitamente integrada nas diversas actividades de lazer em que havia entrado e em crescente predisposição para abrir o seu coração ao amor, Célia, interpretaria o cumprimento de Leandro como um sinal vindo ao encontro do seu desejo. Na verdade, quem tivesse cuidado o cumprimento trocado entre eles, poderia muito bem perceber que ele não foi absolutamente inocente ou normal, como gesto de cortesia e delicadeza. Uma névoa o envolveu, deixando perceber que a empatia entre eles teve o seu despoletar naquele aperto de mão demorado, acompanhado de indisfarçados olhares cruzados e comprometedores. Célia, mais jovem e inexperiente em namoricos, sentiria e fantasiaria ainda mais o momento do cumprimento.

Leandro, já havia tido várias namoradas, contudo, a última viria a revelar-se como um desgosto efectivo de amor, que o marcaria profundamente. Leonilde, assim se chamava a moça, conhecera Leandro na fase final do ensino secundário, através de amigos comuns. Esses tempos, teriam sido exclusivamente preenchidos através de relacionamento de amizades, sem nunca ter havido qualquer pedido de namoro ou compromisso semelhante, por parte do ainda jovem estudante. Leonilde, tinha-o como mais um amigo entre outros, não se podendo dizer o mesmo, de Leandro, que quando a via ou se encontravam, até os olhos redobravam de brilho, as maçãs do rosto ruborizavam e o coração com fortes batidas parecia querer galgar as paredes do peito ou mesmo, um pontual embargo de voz ocorreria. A amizade entre eles, consolidar-se-ia no momento em que a jovem convidaria Leandro para uma singela festa do seu aniversário. Este momento viria a tornar-se crucial para o jovem e futuro estudante de teatro. Acreditou e confiou que poderia sair-se bem se lhe pedisse namoro. Contudo, ainda não seria esse o dia para afrontar as resistências de uma primeira vez. O temperamento algo tímido e inseguro ainda não lhe permitiria reunir as forças necessárias para dar o passo em frente, de tal modo que a oportunidade escapar-se-ia.

Quis o destino, que o percurso académico no ensino superior os tivesse juntado. Leonilde iria frequentar Belas Artes e Leandro, a Escola Superior de Teatro e Cinema. Ambos, encontrar-se-iam com frequência e com um Leandro já amadurecido e ciente do que pretendia para si, pediria namoro a Leonilde, a qual, sem hesitação, aceitaria. Seriam três anos de fulgor afectivo para ambos, embora aqui ou ali, a jovem evidenciasse uma estranha indiferença, que Leandro relativizaria. Mas, o certo e sabido é que essa indiferença não aconteceria do nada. Ela nasceria de um esporádico encontro com um jovem que conhecera numa saída nocturna a um bar próximo da residência académica e com o qual trocara números de telemóvel e muitas conversas. Doravante, o namoro com Leandro conheceria algum indisfarçado esvaziamento. Eduardo, exímio galanteador e dono de excelente oratória, cativaria Leonilde, tendo esta deixado cair paulatinamente o apreço por Leandro a ponto de lhe perder o amor que, a bem da verdade, talvez nunca teria existido. O mesmo não se poderá dizer de Leandro, que via em Leonilde a mulher da sua vida.

O último ano de vivência académica já evidenciava alguns sinais claros de esfriamento do namoro, sem contudo, desanimar Leandro do seu propósito, mas na verdade, Leonilde achava-se confusa entre continuar o idílio ou o finalizar. A finalização não lhe parecia atitude acertada face à lealdade, ao amor e ao apreço que lhe era dedicado por Leandro, por isso decidiu-se por o continuar, numa atitude mais de misericórdia que de amor. Aquele encontro com Eduardo terá precipitado o final do namoro dos jovens estudantes. Embora se encontrassem pessoalmente muito poucas vezes, amiúde trocavam conversas pelo telefone. Eduardo tinha formação académica ao nível do ensino secundário, muito embora, quem o ouvisse, parecesse possuir mais. Profissionalmente, trabalhava num escritório de uma empresa ligada a transportes de mercadorias para, e do estrangeiro, com escritórios espalhados em diversos países da comunidade europeia. A sua presença física combinava com as suas boas capacidades oratórias e esta conjugação muito terá contribuído para Leonilde se deixar fascinar. Leandro, nunca foi um moço que a tivesse fascinado totalmente. O seu carácter de homem probo era inquestionável e isso causava na namorada apreço mas, alguma apatia e simplicidade não combinavam com o tipo de homem que ela idealizava. Leonilde era uma jovem com vivacidade, com apreço por uma vida mais excitante, mais mundana, de ego exigente e virado para o narcisismo, ao contrário do namorado que dava tudo por ter uma vida sossegada, sem vaidade ou gostos sumptuários, pautando todo o seu comportamento em função de uma realidade palpável e discreta. Na verdade, ao fim de quase quatro anos de namoro, Leonilde começaria a questionar-se sobre o que pretendia para si, ao contrário de Leandro, que respeitava as evidentes diferenças de personalidade que entre eles existia. Essas diferenças nunca se assumiriam para ele obstáculo à prossecução dos seus objectivos. O amor e paixão pela namorada dizia-lhe que o respeito pelas diferenças entre eles, seriam motivo de união, mais que de separação.

Acabado o curso e o namoro, Leonilde iria para Inglaterra em busca de satisfazer uma ambição imediata, mais de aventura que de emprego. Enquanto isso, Leandro entraria num período ingrato da sua vida. À falta de emprego imediato, juntar-se-ia o desgosto de um amor não correspondido.

Período difícil passaria Leandro, especialmente, o primeiro ano de carência de namoro, por Leonilde representar para ele tudo o que um homem deseja de uma mulher. A sua primeira experiência amorosa levada a sério, não foi bem sucedida, e isso marcá-lo-ia profundamente. Não fora a amizade e apreço do Sr. Tomás Costa, seu mestre de referência profissional e “pai” nos momentos difíceis, e jamais se saberia qual teria sido a sua capacidade para sair dessa crise emocional e abatimento psíquico. Tomás Costa, homem de vidas e vivências, de sucessos e desaires, experimentado no prazer e no desgosto, no amor e no desamor, terá sido o conselheiro, o amigo, o patrono e o amparo de um filho que nunca teve. Também ele experimentou o fel amargo da vida, vertido no exacto e errado momento, quando o brilho das luzes pareciam quer mostra-lhe o lustre de um futuro sonhado na companhia e braços de uma mulher. Na verdade, a sua companheira deixá-lo-ia prostrado numa profunda tristeza quando abandonou a vida atropelada por uma leucemia irreversível e galopante. A figura simpática, bonita, triste e alva, de Ana Filomena, deixaria em Tomás Costa uma marca indelével que disfarçadamente, procurava não levar ao conhecimento das pessoas que com ele partilhavam o dia-a-dia. Nesse aspecto, Tomás Costa sabia gerir os seus estados de espírito superiormente, de modo que, só quem lhe conhecia a história de vida, o compreenderia. Aos outros, nunca deixaria relatos ou marcas desse infausto acontecimento. Apenas e por razões óbvias, Leandro saberia quase tudo dos seus insucessos e fragilidades e fá-lo-ia para lhe mostrar que há sempre um alguém com mais sofrimento e muitas vezes, bem perto de nós. Esta sensibilidade de Tomás Costa, apoiada na experiência e inteligência, muito contribuiria para o jovem perceber que a vida se faz também de insucessos e que é perante estes que se estribam as pessoas que vencem na vida. Ambos, com queixas da vida, encontravam um no outro, o conforto, a paz de espírito e o equilíbrio emocional, sendo que Tomás Costa já havia feita essa travessia do deserto há muito tempo e a sua postura diante de Leandro, serviria mais para contemporizar e apaziguar, que para se redimir.

Depois de várias conversas sérias e autorizadas, Leandro inverteria paulatinamente o curso de uma depressão que o espreitaria. Na verdade, ao amigo se lhe deve parte do homem que agora respira saúde psíquica e que faz antever de sucesso e sem os fantasmas de um amor não correspondido.

Tomás Costa, agora cinquentão e com uma viuvez de quase vinte anos, guarda sigilosamente uma carta que lhe foi entregue fechada, pela enfermeira que durante o período de internamento de Ana Filomena, mais tempo privou com ela e de quem receberia confiança. Poucos dias antes de entrar em coma, a enferma escreveria a missiva que entregaria à enfermeira com um pedido-recomendação de a mesma ser entregue ao marido só depois da missa de sétimo dia. Para o contactar, deixou-lhe os números do telefone e do telemóvel e o endereço postal.

Dizia a carta:

Meu muito amado marido, quando leres esta carta de despedida já meu corpo jaz, gelado e hirto no fundo da cova fria. Quero que percebas que a minha morte não será mais que a separação física entre nós e que representará um intervalo breve que, marcou destino comigo. A nossa comum vida terrena, ainda que não tenha sido longa, foi plena de prazeres, desde os mais pueris aos que exigiram de nós o melhor empenhamento. Agora, abrir-se-á um interregno físico, mas em espírito sei que estaremos juntos porque tu, tenho a certeza, jamais esquecerás a tua ANAFILÓ, como me chamavas e eu tanto gostava de ouvir.

TÓ, és um homem ainda jovem e aos trinta e cinco anos também não merecias ver-te afastado de mim, pelas razões óbvias do amor que entre nós floresceu pujante. Agora, que já nada poderá ser feito para salvar-me e restituir-me à vida, não te isoles, nem encontres neste facto assunto para te entristeceres. A tua juventude, poderá fazer-te sonhar com outras histórias de amor que o meu destino não deixou concretizar e que te recomendo como continuidade daquilo que ambos sonhámos para nós.

Morrerei convicta de que esta minha carta será o último testemunho de que o amor entre nós se escreveu em letras maiúsculas e de que a minha ausência não deva ser razão para que tu não continues a escrevê-lo da mesma forma, ainda que, nos braços de outra mulher, quem sabe, enviada por forças que transcendem o entendimento dos mortais. Quero crer e faço fé, que continues a ser tão feliz quanto o foste comigo.

De tudo o que a vida nos deu, regozijo-me e apenas lamento o que não te dei: refiro-me ao filho que tanto desejavas e que, quem sabe, por premonição superior não aconteceu.

Embora tenha disfarçado diante de ti nas visitas que me fazes, o mal-estar que em passo de acelerado toma conta de mim, sinto o fio da vida esticado demais. Esta carta se não fosse escrita agora, estou certa, não teria outra oportunidade para o fazer…por isso, fui buscar energias onde elas quase nem existem.

De mim, recebe eterno beijo de amor. Até sempre…

Tranquilamente, como se nada estivesse para acontecer a tão curta distância no tempo, Ana Filomena meteria a carta num envelope, fechá-la-ia e chamaria a enfermeira Bernardete para que a maquilhasse como nos dias em que saía para passear com o amor da sua vida. A prestimosa enfermeira, que no decorrer do tempo de internamento haveria de criar uma relação de empatia com a doente, esmerar-se-ia no modo e de acordo com os gostos sugeridos por Ana Filomena. Finda a maquilhagem, a paciente tomaria o envelope e beijá-lo-ia com os lábios ainda húmidos do batom como que a lacra-lo e seguidamente, entregá-lo-ia a Bernardete para que se cumprisse o seu último desejo. Duas horas depois entraria pacificamente, em coma, até à hora da morte…

Bernardete cumpriria escrupulosamente, no tempo e no modo, o pedido de Ana Filomena. Tomás Costa, quando foi contactado para se encontrar com a enfermeira, questionava-se acerca do motivo, mas de acordo com o combinado, encontrar-se-iam. Para sua surpresa e poucas palavras, receberia das mãos da enfermeira a resposta ao seu questionamento. A muito custo travou o choro, sem contudo deixar marejar os olhos. O envelope, com as marcas bem visíveis dos lábios que num passado recente eram partilha de prazer, calaria fundo na sua alma muito dolorida. Tomás, agradeceria e despedir-se-ia com gestos por a voz se ter embargado. No ar, Bernardete ainda lançaria palavras de conforto, que Tomás agradeceria.

O envelope só seria aberto em casa, por Tomás decidir expressar os seus sentimentos em liberdade, na liberdade das quatro paredes da casa que guardam todos os segredos, os seus e de quem partiu. Sabia que não lhe seria fácil fazê-lo em público por não antever indiferença à sua leitura, mesmo ignorando o conteúdo da carta, mas que ele adivinhava poder ser chocante. Um misto de curiosidade e ansiedade antecipariam a abertura do envelope. A leitura da carta far-se-ia numa primeira abordagem inexplicavelmente, com aparente indiferença. Lê-la-ia repetidamente, uma vez, duas vezes, muitas vezes e de cada vez mais que a lia, os olhos abririam as portas ao choro, qual fonte a brotar ininterruptamente, duma parede.

Perante o conteúdo da carta, Tomás prometeria a si mesmo que Ana Filomena jamais seria passado. Nela encontraria o último e mais belo testemunho de amor, mesmo quando lhe foi sugerido abraçar outra mulher. Dizia para si: jamais encontraria outra mulher que me soubesse lembrá-la quanto esta carta que leio, por isso renegarei a todos os impulsos para me seduzir. Ao ler a carta, Tomás lembrar-se-ia de tantos momentos trocados entre eles e que são lápides, na sua memória. Muitos anos depois, mais de vinte, ainda Tomás lia a carta com especial prazer. Quando se sentia mais em baixo, encontrava na leitura, as energias em débito.

Toda a sua experiência de vida seria marcada pelo infortúnio da sua mulher e da qual saberia tirar ilações para si e para terceiros, particularmente, para o seu jovem amigo e discípulo, Leandro. Este, por sua vez, assimilaria muitos dos conselhos assentes no saber de boas e más experiências, de sortes e infortúnios, de amores e desamores, de vitórias e derrotas, cuja vida de breves anos, ainda só agora está a conhecer o amargo, o primeiro amargo de outros que porventura o esperam.

Tomás Costa usaria de carisma para passar a sua mensagem paternal. Atentamente escutado e conhecedor da perturbação de Leandro, vincar-lhe-ia que a perda da namorada não é nada para a perda que ele teve com a sua mulher e demonstrando-lhe ainda que, se ela o rejeitou, é porque não lhe tinha amor.

- Lembra-te: o amor é necessário para que ambos possam ser felizes. Sem amor, não há felicidade…tu amava-la, mas ela não te amava. Para que serve isso?

- Sim, eu amava-a de verdade, por isso não me é fácil perceber a atitude dela.

- Pois sim, acredito. Sei que não ser correspondido é doloroso, dói, magoa a alma. Olha, ninguém teve como eu, um sabor tão amargo de vida e também tive de aceitar o destino que me calhou por sorte. Muito sinceramente, acredito que terá sido uma grande coisa Leonilde ter descoberto atempadamente, que não te amava. Fica feliz com isso. Certamente, não irias ser feliz se te viesses a casar com ela e mais tarde ou mais cedo, o final da relação iria acontecer e com acrescidas responsabilidades. Certamente, terias filhos e mais problemas para resolver. Assim, apenas te resta esquece-la e nada mais. Os problemas que os casados têm em cima da mesa e que não são poucos, tu não os tiveste. Regozija-te. Olha em frente e outra mulher um dia surgirá no teu caminho. Agora e no imediato, importa pôr uma pedra sobre o assunto e dar importância à tua profissionalização. Tens talento para te fazeres um bom profissional e inteligência para perceberes as minhas palavras amigas e despretensiosas. Agora, é só acreditares em ti.

As palavras paternalistas de Tomás produziriam o efeito pretendido. Doravante, Leandro olharia o futuro com outros olhos e à frente de tudo poria a vida activa. Rapidamente, Leonilde seria passado.

Feita a formação na área da encenação teatral, chegaria a oportunidade de abraçar um projecto independente. O Grupo de Teatro Ri-Sempre, ficaria pela positiva e inevitavelmente na sua memória. Nele, se afirmaria respeitado encenador pelas suas qualidades profissionais e mais, pela conduta de homem. A presença física a fazer lembrar a figura de Cristo, criaria favoravelmente nas pessoas a ideia de acrescido respeito, mas também a exigência de perfeccionismo moral. Sem querer, as pessoas confundiam-no com a mítica e a mística personagem da centralidade cristã, o que nem sempre seria sinónimo de vantagem. Os valores, os mais apurados valores da moral e ética pública emanavam em Leandro com fluência, os quais, causariam apreço nas pessoas e muito particularmente em Célia, a recém-chegada actriz. Sabendo-se do fascínio que esta nutria pela personagem que Cristo lhe causava e que se testemunhava pela colecção de largas dezenas de figuras e estampas, fá-la-ia sonhar com Leandro para seu namorado e a verdade é que o mesmo já dera conta, contudo, não dera qualquer sinal positivo para o romance acontecer. Leandro pretenderia afirmar-se no domínio profissional e só depois deste consolidado, aventuraria novo idílio. Do último, primeiro e único namoro, não guardará particularmente, as melhores recordações, especialmente, o modo abrupto com se daria a separação. O esforço para o olvidar ainda não correu o luto, muito embora as palavras de Tomás Costa lhe estivessem presentes nos momentos deprimidos, - “sem amor, não há felicidade…tu amava-la, mas ela não te amava. Para que serve isso?” . Leandro conformar-se-ia sempre que trazia à memória o diálogo trocado com o seu mestre de referência.

Alguns meses depois de se ter iniciado à frente do Grupo de Teatro Ri-Sempre, o número de espectáculos públicos havia subido positivamente. O entusiasmo, aliado a conhecimentos sólidos transmitidos por Tomás Costa, galvanizaram Leandro, que por sua vez, contagiaria os actores, meio adormecidos por muitos anos de boa vontade e de amadorismo do seu anterior encenador, o esforçado e sempre lembrado Norberto Lopes.

O género dramático tem fortes raízes neste agrupamento teatral desde a sua origem e por sugestão de Leandro, outros géneros entrariam na programação. A natureza bem-humorada do caudilho fá-lo-ia fã da comédia e também da sátira social, esta de raiz vicentina. Os actores, nada habituados a estes géneros, depressa se tornariam exímios comediantes, não sem que nas primeiras peças tivessem dificuldade de controlar o riso que o personagem encarnava, redobrando as gargalhadas aos assistentes, mais por causa do incontrolável riso dos actores, que do enredo, este tantas vezes mal percebido ou atendido.

A versatilidade de Célia para o desempenho de qualquer personagem causaria admiração dos colegas mais antigos e muito especialmente de Leandro, que falaria a Tomás Costa das qualidades da recém chegada actriz, sugerindo potencial para a profissionalização. Este bom desempenho de Célia terá raiz na vontade de agradar ao encenador, quiçá, mais para se tornar centro de atenções afectivas, que teatrais. Na verdade, a estratégia parece querer surtir efeito e a admiração de Leandro também parece ganhar outros contornos, além dos teatrais. Alguns olhares mais insinuantes são trocados entre eles, e, se antes, só aconteciam em privado e mais por parte de Célia, agora, Leandro já não consegue ocultá-los, mesmo publicamente. Sente-se que algo poderá acontecer entre eles e que os mais atentos colegas das lides teatrais já comentam em surdina. Neste particular, Carolina e Teodora são as que melhor terão percebido os sinais.

- Célia, como tens evoluído no desempenho dos teus personagens!!!

- Obrigado…

- Falo sério. Não é à toa que te tens revelado uma actriz prometedora. Chegaste há tão pouco tempo e já és muito apreciada por todos nós e muito especialmente pelo Leandro.

- A vocês vos devo muito e também ao facto de gostar de estar a fazer o que faço. Leandro, também tem sido um óptimo mestre…com ele, é fácil aprender.

- Ainda vais arranjar namorado…aqui no grupo de teatro.

- Porque dizes isso, Teodora?

- Ainda perguntas? Então não se nota que entre ti e Leandro rola algo…

- Ele tem sido muito simpático comigo e como sou a mais nova do grupo, é natural que me passe alguma segurança no meu desempenho…só isso.

- Brinquei…

Na verdade, Teodora não quis dar a perceber em profundidade o que o seu senso lhe transmitia, muito embora o tivesse feito superficialmente. Esta abordagem, ao invés de deixar Célia meio nervosa, deixá-la-ia feliz por até os colegas já terem percebido o que o seu coração sente e deseja e mais ainda, por nem Leandro já o conseguir esconder. A relação que entre eles existe, vai além da institucionalidade de funções. Aquilo que supostamente, poderia ser interpretado como empenhamento de Leandro no sentido de potenciar as qualidades de Célia, viraria paixão e se o pedido de namoro ainda não ocorreu é por ele não ter achado oportuno no tempo e também pela sua qualidade de mestre. Os sinais de empatia entre eles, é pública e notória e parecem merecer a concordância daqueles que partilham o espaço cénico. Teodora, foi a que mais rapidamente terá feito a leitura dos comportamentos dos jovens e não tendo conseguido guardar segredo das impressões registadas, levou até Carolina, que ainda nada havia percebido, os sinais, mesmo ténues, da paixão florescente, levando-a a fazer-se observadora atenta dos olhares e movimentos, particularmente, de Leandro.

- Confirmo a tua perspicácia para a observação. Desde que me segredaste sobre os sinais de Leandro e Célia, passei também a ter curiosidade e não é que eu talvez já tenha visto mais que tu?

- Sim? Conta…

- Ontem, no final do ensaio, deixei-me ficar para o fim e como quem não quer a coisa e na maior naturalidade, fiquei a conversar com Leandro. Célia andava meio ansiosa, percebi, e então disse para comigo: deixa ver no que isto vai dar…

- Sim, estou curiosa…

- Entretanto, como eu não me afastava, Célia foi obrigada a associar-se à nossa conversa. Percebi, cá está, se ela não tivesse qualquer coisa mais privada para partilhar, ter-se-ia aproximado com toda a naturalidade, não achas?

- Claro…Sabes, nestas coisas do amor todos funcionamos assim. Primeiro, somos tímidos e só depois o à vontade ocorrerá quando assumimos publicamente, de contrário…

- Foi isso mesmo que me fez desconfiar de que algo mais rolava entre eles e nós mulheres não deixámos passar uma, é ou não é? Nós também já por lá passamos…

- Pois…e é por isso que apanhamos os mais ténues sinais… Foi só isso que viste? Estava à espera de algo mais. Isso já eu apanhei há muito tempo…

- Espera… foi então que decidi afastar-me para lhes proporcionar campo à sedução…

- Até estou a ficar ansiosa e não é nada comigo…desembucha, Carolina.

- Fiz de conta que fui ao guarda-roupa e ao WC, só para dar tempo aos jogos de sedução.

- Sim…

- Depois, a pretexto de fazer uma pergunta a Leandro, voltei à sala e apanhei-os aos beijos…

- Hum…Confirma-se então a minha suspeição de que entre eles, corria algo…

- Na verdade, Teodora, tens “olho” para a observação. Pela minha parte, ainda não havia desconfiado e verdade se diga: até formam um casalinho a jeito, embora ele seja mais velho, para aí uns dez anos…não é muito, nem é pouco.

- Para o amor não há idade, Carolina, a questão é que ele bata à porta…Olha o caso da Leonor e do Elói…a diferença entre eles é tanta, que ele é quase da idade do sogro…e não se pode dizer que foi um casamento por interesse, pois ele não é rico nem coisa que o pareça…

- Não, rico não é…mas é rico de sedução, charme, boas maneiras e educação. Isto também tem valor, direi mais; é o que verdadeiramente tem valor, não concordas?

- Concordo, concordo…

O pequeno diálogo entre as duas amigas, confirmaria os indícios de que os jogos de sedução entre os dois jovens já iam mais avançados do que se suporia. Os beijos trocados entre eles permitiu perceber que já se passaria à fase imediata à sedução primária e que para breve, estará a afirmação pública e esperada de namoro. Carolina e Teodora, quiçá, as únicas que melhor conhecem a relação entre o encenador e a actriz, prometeram a si mesmas não fazerem alarde do que os seus sentidos observaram ou perscrutaram. Manda a ética e o bom senso, que os jovens namorados gozem de ampla liberdade para materializar os ditames do coração.

Percebe-se que algum constrangimento acompanhe Leandro, em função do seu posicionamento profissional, para que não venha a ser mal interpretado ou julgado. Separar a relação de afecto com a profissional poderá não ser fácil e esta situação, que é nova para Leandro, tê-lo-á inibido a assumir namoro público, ainda que fortemente desejado. Da parte de Célia, ou por menos maturidade ou porque lhe dê alguma vaidade, o desejo de se afirmar namorada do encenador é grande, e disso já deu parte a Leandro.

- Meu querido, por quanto tempo mais vamos namorar às escondidas?

- Tem calma. Para tudo há um tempo…como sabes, a minha condição ainda não me permitiu ter o à vontade para que assumamos nosso namoro.

- De que estás à espera? Desde quando, um professor não pode ter uma namorada aluna? Desde quando, um chefe não pode ter uma namorada subordinada?

- Sei de tudo isso e também sei que…

- Que, o quê?

- Que és a minha namorada e que esse período está a chegar ao fim.

- Nosso namoro vai terminar?

- Não… que ideia. Hoje mesmo, no ensaio, irei tornar público nosso namoro.

- Que alívio…pensei que ias dizer que o nosso namoro chegou ao fim.

Célia acabava de ouvir, o que há muito desejava. A satisfação seria corroborada com uma rajada de beijos em Leandro, o qual lhe corresponderia em igualdade. O tempo que medeia entre esta conversa e a hora do ensaio, são de extrema expectativa e ansiedade por parte de Célia e de nervosismo por parte de Leandro. Este, definitivamente ganharia coragem para transmitir aos actores a assunção do namoro e o discurso e o modo de o fazer já estão a ser elaborados na sua cabeça para que saia bem. Leandro, configura um misto de homem tímido com o de um homem com à vontade. Esta qualidade, só a mostra à medida que o tempo passa em cada uma das novas situações que lhe são deparadas. Até aí, é um homem bloqueado, tímido e nervoso. Ao contrário, Célia, revela sempre tranquilidade, quiçá, resultado de ser mais jovem ou de ser afirmativa e segura de si.

O horário do ensaio para a comédia que irá ser apresentada daí a duas semanas e titulada – Fuja Pai, Que A Mãe Está Bêbada – não sofreria qualquer alteração. Leandro, entre o timing de anunciar no início ou no fim do ensaio, o namoro com a mais jovem actriz, decidir-se-ia pelo final. Pensa que se o anunciasse no início, o ensaio poderia sair prejudicado pelos inevitáveis e esperados comentários.

No período que antecedeu o aproximar da hora do ensaio, os actores conversaram sobre banalidades e quase nada sobre o que os espera. Os mais perspicazes, com excepção de Carolina e Teodora, já conhecedoras da situação, aperceber-se-iam do cada vez mais radiante estado de espírito de Célia.

- Francisca, olha como está eufórica a novata!!!

- Também já dei por isso. Será que ela faz anos hoje e não disse nada a ninguém? Realmente, está diferente…

- Está, e mais produzida. Ela é bonitona, mas hoje, que arraso!!!

- Acho que o Leandro hoje, não vai tirar os olhos dela…

- Olha Clarinha, é assim que se começa. Ela não é só boa actriz a representar, também me parece boa no jogo da sedução…

- Tem a seu favor a idade e a beleza e o mais engraçado, é que apesar de ser a mais nova do Grupo, depressa conquistou a simpatia geral. Devo-te confessar que gosto muito dela. Tem atributos que aprecio. Quanto ao resto… está na idade de se lançar. Ela tem carinha de quem nunca teve namorado, por isso é provável que ande a lançar a escada a alguém e até não me admirava nada que fosse ao Leandro.

- Sim, a princípio parece disponível e verdade se diga, nem seria um par desajeitado.

Enquanto este diálogo decorreu, Carolina e Teodora já haviam feito as suas observações em surdina.

- Olha como está a gaiata hoje!!!

- Já me apercebi, Teodora. Não é que ela está cada vez mais eufórica!!! - Até parece que está de pilhas novas…

- Está apaixonada... Já vivemos isso no nosso passado, não muito distante. Às vezes ainda me rio do meu comportamento quando estava apaixonada pelo Filipe. Eram comportamentos tão ridículos, vistos agora a esta distância, mas ao mesmo tempo tão lindos, e que não voltarão mais. Chego a ter nostalgia desse tempo, mas pertence agora ao passado.

- Feliz daquele ou daquela que se apaixonou pela pessoa certa. Não irá ficar para sempre com uma frustração de amor para toda a vida, como é o meu caso. Lembras-te do Damião?

- Lembro bem.

- Pois, esse moço ainda não morreu na minha cabeça, apesar de o saber casado e feliz com a mulher que o levou.

- É, a paixão tem dessas coisas…Minha mãe, ainda de velha, gostava de falar de um tal Teotónio, que eu não conheci, mas que dava para perceber que houve grande paixão por ele. Ela falava poucas vezes nele, mas sempre que falava, fazia-o sempre com felicidade e brilho rutilante nos olhos já cansados e ornados de rugas de expressão. Eu, quando a ouvia falar disso, pensava para mim: eu casei com o homem por quem me apaixonei e não tenho maneira de a entender…será que uma paixão não realizada é coisa para toda a vida? Com a minha mãe foi e pelos vistos, tu também confirmas. Na verdade, o coração é uma caixinha de surpresas e memórias.

Quem alimentou alguma esperança num namorico com Célia, foi Leonardo, moço pouco mais velho, aloirado, barba esparsa, olhos acinzentados, pele alva, magro e alto e cujas características físicas nada faziam o género tipificado da jovem. Esta, desde há muito havia construído o seu homem-tipo e os olhares mais sedutores de Leonardo apenas lhe davam alguma vaidade e nenhum interesse. Verdadeiramente, só Leandro conseguiria mexer com ela. O homem desenhado na mente como referência, já havia nascido há anos, desde os tempos em que começaria a coleccionar imagens e figuras da religião cristã e muito particularmente a de Cristo, seu ícone espiritual e modelo personalizado de um homem real para amar. Nunca outro algum a terá interessado ou motivado para o amor. Essas referências do passado cristalizariam na sua mente, quiçá, através da educação religiosa recebida ou por opção natural. Sabe-se que, desde muito jovem e a resposta a pergunta feita pela avó sobre namorados, lhe dizia: tudo tem um tempo e o meu ainda não chegou.

Célia não gostava de ser questionada pela avó sobre namorados e não raras vezes que isso acontecia, metia-se no quarto e beijava avidamente as figuras de Cristo, e muito particularmente, uma que ela adorava e que tratava com especial carinho. Para felicidade dela, e passados alguns anos, eis que nos seus braços cai como que por milagre um sósia do seu ícone de infância e puberdade. Este facto, levá-la-ia a acreditar que só por intercessão superior, só por milagre divino, terá acontecido. Perguntava-se: quantos homens hão parecidos com Cristo? Poucos ou quase nenhuns e logo a mim me haveria de calhar em sorte um namorado tão parecido que até parece o verdadeiro Cristo.

Esta reflexão e convicção, fá-la-ia cimentar a sua fé. À avó daria conhecimento do namorado só depois de este fazer a divulgação pública, no final do ensaio.

O ensaio decorreria como todos os outros, apenas havendo da parte de Célia uma maquilhagem mais apurada, que daria nas vistas aos mais atentos. Entretanto, o final do ensaio aproximava-se e nos rostos de Leandro e Célia vislumbravam-se estados de espírito bem diferentes: ele mais nervoso e tenso, contra o que é habitual e ela mais relaxada, eufórica e gracejadora. No meio de felicidade incontida, Célia, sabedora do que estava reservado para o fim, tomaria posição bem próximo de Leandro e à medida que este introduzia o “discurso” e o distendia, ela mais se aproximava. Tomando a palavra, Leandro, pediria aos actores para não dispersarem porque lhes tinha algo a dizer.

- Que será que ele nos quer, Francisca?

- Não faço a mínima, Clarinha. Será que ele se vai despedir de nós e ir trabalhar para outro grupo cénico? Ele aqui não ganha muito e se quiser viver disto terá de fazer algo mais…

- A sorte dele é que é solteiro, senão, estaria tramado…

- Sim, mas para poder organizar vida e pensar, sei lá, casar, o que ganha aqui poderá ser insuficiente.

- Nem só de dinheiro, vive o homem…

- Falaste bem. O dinheiro é apenas um contributo, quando o resto já existe. Refiro-me à saúde, ao amor e à paz de consciência e pública.

- Estou expectante…

- Eu também. Aliás, nunca ele nos pediu para não desmobilizarmos no final. Nunca se nos dirigiu para dar conhecimento de nada…

Posto que a curiosidade de todos era mais que muita, o silêncio fez-se presente e Leandro aproveitaria para iniciar a comunicação:

Caros amigos:

- Tudo o que vos quero dizer, cabe em poucas palavras. Não tendo relevância para o Grupo Cénico, não poderia deixar de vos dar a conhecer o seguinte: Eu e Célia, estamos namorados e noivos. Sei bem que este assunto é do domínio particular e pouco poderá interessar-vos, contudo, achei, ou melhor, achamos, eu e Célia, que o deveríamos fazer em nome da amizade que a todos, nos une. Também vos quero dizer que, sendo namorados, não fará de Célia uma actriz privilegiada. Dentro deste espaço cénico, as responsabilidades são iguais para todos.

Ainda não tendo terminado a comunicação, a mesma seria coroada com prolongada salva de palmas e alguns vivas aos namorados, seguidos de cumprimentos e alguns elogios pessoais. No final das saudações, Leandro anunciaria aos presentes um lanchonete volante na Pastelaria Chocolate Negro.

Com excepção de Carolina e Teodora, que já haviam descortinado nas entrelinhas o enamoramento, a declaração cairia como uma bomba entre os restantes actores, sendo que Leonardo seria o mais atingido pelos estilhaços por no subconsciente alimentar platonicamente um namoro em fantasia.

O sentimento geral dos presentes era de franca satisfação, mas Célia não cabia em si, de tão feliz. Naquele momento da declaração pública do namoro, a cabeça dela posicionou-se no que passava dentro da sala e ao mesmo tempo na avó Zulmira e no seu ansiado desejo de ver a neta namorar. Do que está para trás, nunca Célia se arrojou a dizer à avó das suas pretensões em Leandro, mas agora percebe-se que jamais guardará segredo. De hoje em diante, nem avó nem neta, viverão cada uma a seu modo a angústia do namorado que não surgia.

O lanchonete prolongar-se-ia no tempo, para além do que era esperado. A chegada a casa a desoras, trazia os avós algo preocupados e mais particularmente a avó que era serenada pelo marido com expressões do tipo: “talvez o ensaio tenha demorado mais tempo”, ou então “ a carrinha que os transposta avariou”, enfim…Bom, seja como for, Zulmira estava seriamente preocupada, até que finalmente sentiu passos a subir as escadas. Veio à porta e apenas viu Leandro e mais preocupada ficou.

- Que aconteceu Sr. Leandro!!!? Minha neta!!!?

- Esteja descansada Srª Zulmira, a sua neta está bem e recomenda-se…

- Por que fala assim?

Nesse entretanto e para acabar com a angústia da avó, Célia surgiria com largo sorriso.

- Oh moça, tu dás cabo de mim… Só a esta hora!!!?

- É…

- Que aconteceu? Nunca um ensaio demorou tanto tempo…já passava mais de duas horas e tu sem chegares. Cheguei a pensar o pior…

- Como vê estamos bem…

- Bem sei que ides ter espectáculo público brevemente e se o ensaio tivesse demorado mais uma horita, eu teria percebido, assim…duas horas, foi demais…

- Foi por uma boa causa avó…, não foi Leandro?

- Sim, sim, corroborou o encenador

- O jantar até já está frio. Vou mete-lo no micro-ondas. O Sr. Leandro janta connosco que a comida chega e sobra. Olhe que de certeza irá gostar…

- O que é o jantar, avó?

- Uma coisa que sei que gostas muito. É fácil adivinhares.

- Bacalhau com natas?

- Isso mesmo e uma salada mista a acompanhar.

- Pena não haver champanhe…

- Quem disse que não há? Há sim, só que nenhum de nós faz anos, a não ser que o Sr. Leandro, faça.

- Eu também não faço anos, retorquiu o jovem.

- Vou dar de sugestão bebermos um vinho velho e o champanhe ficará para um dia de anos, não achas melhor, Adérito?

- Sim, um bom vinho velho combina melhor com bacalhau, mas…gostos não se discutem. Se Célia quer champanhe, porque não? Nós bebemos vinho e vós, para o vinho que bebeis…esta gente nova é só sumos e água. Para falar verdade, até acho estranho pedires Champanhe. Quando fazemos anos, só te vejo a beber sumos ou colas.

- É verdade, avô, mas… hoje apetece-me beberricar um pouco e demais, temos visitas.

- Certo. Respeite-se a tua vontade e além disso, ter tão ilustre visita não acontece todos os dias…

- Leandro é um visitante muito especial, temos de o acolher bem…, não acha avó?

- Leandro, que confiança!!! Sr. Leandro, querias tu dizer. Onde já vai a ousadia…- O Sr. Leandro desculpe o jeito de Célia, é muito nova e ainda não percebeu que as pessoas que estão acima de nós devem ser tratadas com reverência…

- Não, isso era outros tempos. As pessoas devem ser tratadas com respeito mútuo e apenas isso. Ninguém está acima de ninguém. Cada um tem uma missão e se a cumprir bem, já fez a sua parte. Essa coisa da reverência é nocivo para todos e aí todos poderíamos ser reverentes de alguém.

- Sabe, Sr. Leandro, eu ainda fui educada noutros tempos e custa-me a adaptar-me a essas modas. Eu dou-me bem em ser reverente e acho que nunca mudarei. Acho que a minha neta está a ir longe demais. Eu dei-lhe uma educação igual à que recebi, só que os tempos são outros e isso faz-me alguma confusão.

- Esqueça. Ainda bem que as coisas estão a mudar e mudam porque cada vez as pessoas são mais iguais em tudo, seja na formação académica seja nas oportunidades.

Posto que a conversa não estaria a convencer a Sr.ª Zulmira das virtualidades dos novos tempos e das novas relações sociais resultantes das equidades conquistadas, ela sugeriu que se jantasse. Assim, mandou que se sentassem, enquanto foi à cozinha buscar o bacalhau com natas.

- Esse lugar aí é para o avô, Célia. Tu sentas-te ao meu lado. O Sr. Leandro fica ao lado do avô. O Sr. Leandro faça o favor de estar à vontade. Nossa casa é humilde mas recebe com respeito e educação.

- Obrigado.

O jantar decorreria com inusitada felicidade da parte de Célia e os seus olhos brilhantes não faziam supor da parte da avó o que estaria para acontecer na parte final do repasto. Apenas se apercebeu que a neta estava feliz pela presença do encenador, num quadro de bem receber.

- Avó, o jantar está óptimo, parabéns.

- Está como o faço sempre. Aprendi com a minha falecida mãe e nada mais mudei.

- Na verdade, está de parabéns a Sr.ª Zulmira.

- Também lhe digo Sr. Leandro, que este possa ser o primeiro de muitos. Não estava a contar consigo, mas a comida acabaria por chegar.

- Só faltou uma coisa, avó, sabe o que foi?

- Talvez um pouco mais de bacalhau, não?

- Não…

- Então, natas ou o bacalhau estava salgado?

- Nada disso.

- Não estou a perceber…

- Onde pára o champanhe?

- Ah, não estava a entender. Falta bolo para acompanhar…

- Faltava, queria a avó dizer, mas não falta. O bolo está bem perto de nós, é só ir buscá-lo.

Célia foi ao carro buscar o bolo que iria ajudar ao desejado e mais aguardado momento.

- Parece uma festa de aniversário, lembrou Adérito.

- Parece sim, avô, mas devo dizer-lhe que o dia é mais importante que um dia normal de anos.

- Como assim, retorquiu a avó?

- Eu e Leandro…

- Sim e daí?

- Hoje no final do ensaio fomos todos ter um lanchonete na Pastelaria Chocolate Negro.

- Alguém fazia anos?

- Não, ninguém fazia, mas eu e Leandro quisemos oferecer um lanche e anunciar aos nossos amigos que somos namorados. Este champanhe e bolo vão testemunhar diante de vocês o nosso compromisso de amor. Publicamente, já o fizemos, só faltava fazê-lo em família.

- Está bem. Fico feliz por vós. Que Deus vos cubra de bênçãos e que a nós não nos desampare.

A conversa doravante revestir-se-ia de contornos diferentes e a distância de Zulmira e Adérito para com Leandro encurtar-se-ia e a reverência daria lugar à familiarização e ao afecto. Na verdade, cada um deles no seu imaginário olhavam-no como futuro neto e a solicitude ganharia asas. Leandro, passaria a ser visita regular e desejada. Zulmira, via um dos seus maiores desejos materializar-se, consubstanciado no namoro da neta e demais, na pessoa do encenador. Para a vizinhança, o Sr. Leandro jamais será o Leandro que chegou à terra para ensinar a arte de fazer teatro, mas o namorado de Célia e para Zulmira, o Sr. Leandro passaria a ser na relação com terceiros, o Sr. Dr. Leandro.

Ciosas de saberem da veracidade do namoro anunciado, algumas vizinhas confrontariam Zulmira. Neste particular, Celeste e Faustina alimentariam grande curiosidade e na primeira oportunidade surgida, eis que puxariam conversa.

- Ó Zulmira, consta para aí que a tua Célia namorisca o Leandro do teatro.

- É verdade, Celeste. O Sr. Dr. Leandro, ao que parece, não resistiu aos encantos da minha neta.

- É… tua neta é interessante. Parabéns à avó que, certamente, andará ufana com a notícia.

- Nem ando, nem deixo de andar. Quero para a minha neta o que certamente, qualquer avó quer. Mas, se quereis saber mesmo a minha opinião, dir-vos-ei: - nunca pensei ter para a minha neta, um namorado doutor.

- Doutor?

- Sim, o Sr. Leandro é doutor em teatro.

- Doutor em teatro, ele há isso!!!?

- Então não há…Eu não sei se ele não é também doutor noutra coisa, mas parece-me que sim…