Lembranças de Inverno

I

Chovera o dia inteiro. Final de tarde, A chuva dera uma trégua. O sol, acanhado, desaparecia atrás dos montes. Um friozinho gostoso fazia tilintar os dentes. Vesti-me da cabeça aos pés, pus um casaco. Saí. Fui dar uma volta, estava meio macambúzio de estar há tantas horas dentro de casa.

Avistei a praça. Estava vazia ! Mesmo assim, aproximei-me. Sentei-me no banco ainda molhado debaixo de frondosas árvores, que salpicavam gotas d’água. Encostei-me, cruzei as pernas, coloquei o cotovelo no colo, uma das mãos apertava o queixo. Então comecei a pensar, ou melhor, a recordar, recordar, recordar...

Lembrei-me da juventude, quase adolescência. A lembrança de A veio-me à mente. Centrei nela o meu pensar. Quantos anos ! Quanto tempo ! Foi umas das mais relevantes paixões de minha vida... Como ela era linda ! Embora me lembre de suas feições, impossível descrevê-la com perfeição agora...

II

Resta-me tão somente uma lembrança de sua beleza, a mais bela mulher que tive a oportunidade de conhecer. Linda ! meiga ! Que sorriso ! Tinha a minha idade. Como nos conhecemos ? Num baile de carnaval ! A fora dormir na casa de uma amiga para poder ir ao baile. A família era evangélica, o pai, pastor. Que dificuldade ! Lá estava A sentada numa cadeira perto do salão, observando a dança que rola- va solta, alegre... Ao avistá-la, meu coração disparou. Não mais retirei os olhos daquela princesa...

Aproximei-me. Ela olhou para mim. Sorri. A retribuiu o sorriso. Pronto ! Fácil chegar até lá. Pedi licença e sentei-me ao seu lado. Apresentei-me. Ela deu a mão educadamente, apresentando-se, também.

III

Havia em seu olhar um brilho de satisfação. Enamorou-se de mim à primeira vista. Eu, idem !

Não perdi tempo. Tomei-a nos braços e... beijei-a. Senti que ela tremia. Era o primeiro beijo de A. Acho que o “milésimo” meu. Entabulamos namoro, sério ! Mas havia um grande obstáculo : seu pai ! a igreja ! Tornei-me, então, evangélico, só para estar sempre ao seu lado. Sendo evangélico, B, seu pai, consentiu que namorássemos, porém éramos bastante vigiados, controlados...

De nada valeu tanta vigilância. Seis meses depois, A engravidara. Foi um deslize. Aconteceu...

IV

Quando soube que estava grávida, A mudou-se... inventou uma história e, com o apoio da mãe, C, foi passar uns tempos na casa de uma tia, no interior. Seu pai nem desconfiara... B, o genitor, só viria a saber tempos depois, muito tempo depois...

Eu desejava casar-me, assumir o “pecado”, todavia A não quis. Seu pai era pastor, seria um escândalo ! Uma imensa vergonha !

A criança nasceu, contudo foi deixada num orfanato, até hoje não sei com quem estar meu filho. Perdi-o ! Nem mesmo tive o direito de saber em que orfanato ele fora deixado, apesar de ter lutado bastante para desvendar esse segredo.

V

Após um período de um ano em casa da tia, A voltou para casa. Estava diferente, já não era a mesma. Mudou totalmente.

Rompeu definitivamente comigo, tinha receio de engravidar outra vez... Não houve jeito. Tentei de tudo. Em vão ! Ela estava decidida. Embora me amasse, renegava-me...

Tudo por causa de uma religião ! Por causa de uma igreja ! Por causa de um pai pastor !

C, sua mãe, de tudo soube, entretanto apoiou a decisão da filha, para o meu desgosto. Sem jeito a dar, afastei-me. Meu coração doía... eu a amava !

VI

Não suportando a separação, plenamente inconformado, num ato tresloucado, procurei por seu pai, na igreja. Contei tudo ! Aspirava à sua compreensão...

Quanta ingenuidade ! O pastor revoltou-se. Expulsou A de casa, separou-se da esposa, perdeu seu posto na igreja. Foi um escândalo !

Que fiz eu ? Senti-me culpado. Trago até hoje esse sentimento de culpa comigo.

VII

Os anos se passaram. O amor esfriou. Continuava sendo rejeitado, agora mais do que nunca !

Dez anos mais tarde, tive notícias de A. Seus pais reataram.B, seu pai, tornara-se pastor de outra congregação.Tudo se acalmara. Perdoou a filha, no entanto o destino foi cruel. Seus pais viriam a falecer vitimados por um acidente automobilístico. A casou-se com um americano. Se era feliz ? Não sei dizer... E eu ? E o nosso passado ? E o nosso filho ? ...

VIII

Nem ela mesma sabia do seu paradeiro. Perdeu-o, para

sempre!Certamente fora adotado por alguma família e não ti- vemos mais notícias dele. Nem ela, nem eu...

Tudo isso veio-me à mente naquele final de tarde chuvosa de julho.

A noite caiu. Ventava forte. Voltara a chover...

E eu, com os olhos marejados de lágrimas, despedi-me desse assunto.

Havia um futuro, uma vida inteira pela frente !

FIM

Ivan Melo
Enviado por Ivan Melo em 19/01/2010
Código do texto: T2039022
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