As palavras condenadas:

As palavras condenadas:

Gênero: Literatura & Ficção

Autor: Léa Ferro

(Para C.)

Há tantas palavras que moram em mim, que se eu as escrevesse, recriaria vidas ou traria de volta os fantasmas adormecidos. Prefiro que os fantasmas permaneçam exatamente onde estão agora, afinal, foi uma longa e árdua caminhada enviá-los de volta para o mundo oculto. Queria poder recriar vidas, ao invés de trazer os fantasmas. Vidas são vivas e os fantasmas me mutilam.

O que me assombra estará eternamente presente em meus dias. Talvez, e somente talvez, eu me liberte completamente, quando morrer.

Não sei se existe de fato um Deus, que nos conforte após a morte e nos livre destas maldições. Eu nem sei se existe um Deus, embora tenha sido educada para crê-lo. Se eu fosse acreditar piamente neste Deus, faria inúmeras perguntas que jamais teriam respostas e minha fé se tornaria muito menor do que já é. No entanto, limito-me apenas a perguntar-me porque não sou ateu.

“Onde andará Deus?”

Talvez, este Deus também seja um fantasma, e esteja oculto dentro de mim. Procuro não chamá-lo, para que não me atormente, para que eu possa deixar guardadas as palavras condenadas. Como poderia dizer todas as coisas que nem eu ouso mais pensar, se tantas já me perturbam?

Algumas simples palavras revelariam tudo que eu sou e tudo que vivi. Não sei por que, mas acredito que assustaria imensamente os olhares despreparados se pudessem ler a minha alma.

Diante este temor, cortino meus ossos e meu olhar com a fumaça dos risos inventados, para ludibriar espelhos e pessoas. Trajo vestes que ponderam a minha palidez e maquio minha tristeza, com a fotografia que carrego em minha face.

Não conto as horas para evitar a loucura, embora nem sempre eu possa driblá-la. Tento apenas manter a calma que adquiri nos silêncios e fazê-la crescer dentro de mim, tornando-se maior que a tempestade.

“Tua voz é tua razão, o silêncio é lâmina afiada.”

O silêncio me ensinou a ter calma. Eu calei, mas agora nem sei mais se o silêncio foi de todo proveitoso. Sinto como se tivesse alimentando um ser desconhecido calando por tanto tempo. Eu deveria ter gritado a dor, chorado o amor, reclamado a solidão. Eu deveria ter explodido como as pessoas normais. Não sou normal. Sou apenas tola. Sou frágil, mas tentei ser forte ao rechear-me de ilusão.

“Quanta inocência!”

Tenho um estranho dom de acreditar e um dom maior para acreditar no que não existe. Eu acreditei na sinceridade escassa dos olhares que não souberam me ler. Eu acreditei em palavras que jamais foram escritas e, quando lançadas ao vento, se perderam. Eu acreditei em abraços que diziam confortar, mas que apenas trouxeram desprezo.

Tornei-me uma compulsiva, embora eu não demonstre. O vicio faz par em minha tormenta, mesmo tendo a consciência de que sou uma suicida indireta, finjo não ser e permito-me sempre mais uma tragada no cigarro que consome as minhas forças físicas.

A leitura diária do horóscopo, ilude-me para um novo dia, acompanhada de uma caneca de café iludo a fome, ao nascer do sol iludo-me para a beleza que já não existe.

“Só não me ilude a poesia, tão real.”

Queria saber com precisão o exato momento em que tudo se perdeu para sempre.

“Porque tudo se perdeu para sempre.”

Porque não fui capaz de notar? Se houve gritos, eu os deveria ter ouvido. Se houve lágrimas, eu as deveria ter visto. Se houve alguma palavra, eu tinha a obrigação de redesenhá-las. As verdades foram corroídas pela erosão dos sentimentos. Não somos razão, somos apenas emoção, cada qual mergulhado em seu mundo particular, com os olhos vendados, distante das realidades necessárias.

“Porque tudo se perdeu para sempre?”

“Diante tua bondade e amor, sei que jamais derramaria teu pesar sobre ela. Vives num mundo sólido, onde a dor é real, mas tuas palavras e teus sonhos são teorias que não foram colocadas em prática nas horas exatas, porque não pudeste ou porque não quiseste, então, inconscientemente, direcionaste tua fúria a mim e sobrecarregaste o fardo dos anos que carrego sem queixar-me. Jamais esvaziei a dor e caminho aos tropeços carregando agora, mais este peso. Conheço o amor e a dor bem de perto, não sou indiferente ao teu pesar, apenas não compreendo esta condenação mundana a que me presenteias e vivo uma tormenta sem fim, por não aceitar teu infiel julgamento.”

“Todo e qualquer julgamento é um ato infiel.”

Estou cumprindo um castigo onde caminho entre dois mundos opostos. Obrigo-me a suportar e a calar. Meu riso é barro diante o julgamento que não fora anunciado. Oscilo entre a tristeza e a felicidade que é viver. A felicidade me chega apenas quando os olhos dela me tocam ou quando estou diante o mar e tudo se apaga. Nestes momentos, recordo a infância que não preparou-me para o agora.

“Sou uma mulher.”

Sou uma mulher e nem sei como cheguei à fase adulta ou porque lutei por ela. Dos tempos antigos, lembro-me de jalecos brancos e seringas que entorpeciam-me. A voz trancada na gaveta ficou empoeirada. Lembro-me de voar.

Os mundos se perderam porque teus olhos se rasgaram diante a minha alegria. O acumulo de tristeza, fez com que eu me permitisse ser alegre. Todos temos o direito e dever de ser feliz. Eu me permiti ser feliz, com isso eu me condenei.

“Porque não a amaste?”

Quantas vezes ela gritou teu nome em vão? Quantas vezes ela suplicou para que se quebrassem os silêncios ensurdecedores? Não compreendemos o silêncio como de fato ele é. Apenas ela tem a real consciência do que significa ser silêncio, ter silêncio, viver silêncio...

O desejo do grito ficou travado na garganta em cada momento que o silêncio se fez maior que o suportável. A sede de palavras e sons se perderam pela casa, entre a moldura que abrigava a paisagem pintada em preto e branco e o móvel que escondia a soleira da porta, tentando afastar o vento frio de inverno rigoroso.

Tudo o que ela desejava era que se estilhaçassem os silêncios, para poder ingressar no mundo dos sons e dos tons em que vivemos. Desejava, ardentemente... Como desejamos o ar que respiramos e nos mantém vivos.

A nota musical em dó maior que inicia a melodia, a caixa de fósforo que cai no chão, o cantarolar dos pássaros que anunciam a manhã, o toque alvoroçado dos dedos no teclado, o arrastar dos chinelos no piso antigo de maneira, o tilintar dos talheres no prato, a voz dengosa que pede carinho... Tantos sons que ouvimos diariamente e não valorizamos ou não nos damos conta, o que damos ao nome de barulho ela glorificava, o que reclamamos ela suplicava, inda que na brevidade.

O silêncio se tornou um abismo.

“Porque não a amaste?”

Quem ama mais? Quem ama menos? Que importa amar mais e não saber amar? É preciso saber amar, mas o amor não sobrevive sem amor igual. Condenar o amor e julgar sentir amor maior, não é amar. O amor não é apenas um sentimento, mas atitudes. O amor é feito de realizações, não de teorias. O amor é sacrifício, não apenas euforia. O amor é matéria prima da alma, que nem sempre sabemos lapidar.

“O amor é um pedaço de vida que nos cobre de céu.”

Em nome do amor guardei tantas palavras, para que a dor não fosse maior em outros olhos. Suportei ausências, esquecimentos, mágoas, injustiças...

Tento não deixar que a mágoa se transforme num sentimento mais denso. Dissipo meus pensamentos e minhas queixas nas marés que me embalam docemente, para que a lucidez seja minha companheira ao longo da estrada.

Hoje não acredito em promessas, nem nas palavras. Não sustento palavras jogadas no ar, como se fosse um bálsamo para as chamas.

Guardo palavras mal proferidas no baú dos esquecimentos, para que não despertem do sono os fantasmas invasores. Os fantasmas me oprimem.

“Tua presença me atormenta, como um destes fantasmas. Não creio que se dissipará a agonia. Creio apenas no que posso ver e sentir. Sei muito pouco sobre a vida, sobre o mundo, sobre as pessoas, mas sei com certeza o quanto eu fugi do amor para na fazê-la doer. Culpei-me muitas vezes por amar, me escondi dos meus próprios sentimentos em nome da minha fé. Tudo que fiz foi em vão, porque o amor se tornou maior que o medo de renascer e enfrentar as dificuldades. Não esperava tua devoção ao estar ciente do meu amor, mas esperava compreensão e alguma verdade. Nunca me amaste, e embora eu sempre tenha desconfiado, tentei acreditar.”

“Não grito os sonhos aos surdos. A surdez não está nos ouvidos, mas nos olhos.”

Quero sonhar toda a minha vida, mesmo que ninguém compreenda, o amor me compreenderá. Quero amar toda a minha vida, como se cada dia fosse o primeiro, como se todo dia fosse o último. Quero sonhar o que sou e o que não sou capaz de fazer, sonhando construirei um mundo, construindo me tornarei completa. Quero sonhar mesmo quando sentir fome ou frio, para não apagar a inocência que restou. Quero sonhar até mesmo o que é impossível. Quero amar amanhã, com a mesma benevolência de hoje.

“Quero amá-la toda a minha vida.”

“Hoje convivo, indiretamente, com tua presença e embora eu respeite os desejos, vontades e sentimentos, limito as suportações. Não sou responsável pela tua dor. Não mais carregarei o que não me pertence. Nunca houve de fato a verdade, houve apenas uma disputa de posse sobre o amor e uma libertação pela metade. Não implorarei pela tua presença, porque sei que não a deseja. Findo o adeus envelhecido e guardo em mim o amor que não posso conjugar.”

“A verdade é uma mentira inventada.”

- Eu a amaria em silêncio!

Léa Ferro. SP. 27 de Março de 2009.

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Léa Ferro
Enviado por Léa Ferro em 09/05/2010
Reeditado em 24/11/2014
Código do texto: T2246914
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