Mentiras Incondicionais, amores condicionados: a história de Rick Darnell (Cap. 1)

1.1. No covil do fogo inimigo

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Rick sabia que a trégua não ia durar muito, sentia o gosto de sangue na boca, mal conseguia respirar, que dirá se mover com uma perna destroçada pelo fogo do inimigo, costelas quebradas pressionando seu pulmão fruto de quando se lançara por sobre a trincheira para escapar da granada. Sua testa sangrava com o corte obtido na queda e seu ombro esquerdo estava deslocado também como resultado do mesmo infortúnio. Não sabia muito bem quanto tempo de vida ainda teria, se morreria dos ferimentos ou de um ultimo golpe de misericórdia desfechado pelo batalhão inimigo. E então compreendeu aquilo sobre o qual havia ouvido falar e que agora experimentara: a sensação de á beira da morte visualizar toda sua vida passando diante de seus olhos. Questionava-se: "Como chegara até ali, naquele campo de uma guerra que não era sua, para lutar por um governo que sequer lhe concedera uma bolsa de estudos na universidade?", "O que fora sua vida até aquele momento?", "Vivera como uma garoto pobre do campo de Manchester no Reino Unido e agora estava prestes a morrer sem que nunca ninguém conhecesse seus talentos: o desenho, as poesias, os contos...fora um auto-didata a vida inteira e de que isso lhe servira?" Lágrimas rolavam por seu rosto, de dor, de frustração, de revolta, de angústia...e de repente uma forte explosão, seus ouvidos zumbiram, sua visão ficou fosca e tudo se acabou.

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1.2. No escuro da confusão de si mesmo

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Escuridão, barulho, tosse...passos, gemidos, outras pessoas perto...não estava morto? Estava pensando, logo, ainda deveria estar existindo - afinal não era esse um princípio filosófico? - mas onde estava? Porque não conseguia enxergar? Sentia cheiro de éter e outros odores..medicinais. Isso! Deveria então estar em um hospital de campanha. Fora resgatado afinal, devia ser isso. Mas porque não estava enxergando? Será que a última explosão da qual se recordava com alguma dor de cabeça despontando havia lhe tirado a visão? Oh não! Que não fosse isso! O que faria sem visão? Como poderia escrever? A angústia recomeçava a comprimir-lhe o peito. Precisava saber, tentou se mover, chamar por alguém, gritar, mas uma dor lascinante lhe cortou corpo e espírito. Arfou em desespero, parecia ter corrido uma maratona, ficou imóvel, tentando acalmar a respiração e abrandar a dor.

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Ouviu então uma voz feminina que deveria ser de uma senhora lhe dizer:

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- Calma meu jovem, você não deve tentar se mover, ainda há muito o que curar nesse corpo antes de novas aventuras.

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Ele queria lhe perguntar onde estava e porque não estava conseguindo enxergar ou falar e mesmo que não conseguisse fazer isso ela pareceia ler seus pensamentos e lhe deu todo o relatório de suas avarias físicas:

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- Você chegou quase morto aqui, no Hospital Santa Helena. Ingeriu muita fumaça e isso prejudicou suas cordas vocais, deverá deixá-las descansar por alguns dias até que volte a tagarelar por aí. Seus olhos estão com bandagens porque alguns fragmentos de granada machucaram sua retina e a cirrugia para limpeza da área os deixou sensíveis á luz, mas em breve você voltará a ver tudo e todos. Imobilizamos suas costelas, colocamos seu ombro no lugar e o enfaixamos. Você parecia uma peneira de tão furadinho, mas retiramos todos os projéteis, fizemos transfusão e cuidamos de seus ferimentos. Você vai sobreviver menino. Á propósito, sou a enfermeira Anna e estarei cuidando de sua recuperação durante o tempo em que estiver aqui. Qualquer coisa é só chamar, tem um botão-campainha na beirada de sua cama. Agora descanse e deixe seu organismo trabalhar na sua saúde.

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Estava cansado ou o remédio analgésico voltava a fazer efeito, por isso, acabou adormecendo e sonhando.

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Estava no campo de trigo, ajudando na colheita quando ouviu o chamado de sua mãe. Correu para casa e recebeu as duas cartas: uma com timbre da Universidade de Manchester e a outra com insígnia militar. Abriu a primeira, ansioso, havia proposto sua candidatura ao curso de Literatura Inglesa, baseando-se em suas ótimas notas ao longo do colegial. Esperava muito ser aprovado com bolsa integral, já que seus pais não tinham recursos para custear uma faculdade particular. Eles eram muito mal alfabetizados, tendo vivido suas vidas para o trabalho no campo e a criação dos três filhos: Emilly, Leonard e Rick.

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Abriu nervoso perante sua expectativa e da mãe que se mantinha um pouco mais afastada, mas igualmente apreensiva e logo recebeu a ducha fria em sua alma ao ler aquelas poucas linhas: "Prezado, Sr. Richard Darnell , apesar de suas notas meritosas, lamentamos no momento não poder disponibilizar bolsas integrais aos candidatos da escola pública de Manchester. Mas aguardamos sua presença para negociar as condições de pagamento caso ainda deseje cursar nosso bacharelado. Saudações."

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Rick desabou na cadeira e chorou. Sua mãe não falou nada apenas o abraçou. Foi quando seu pai adentrou a casa, olhou a cena e balançou a cabeça com desprezo. Leonard havia morrido em um acidente com a colheiteira, um ano atrás, era seu filho preferido, loiro, olhos azuis, musculoso, com disposição para o trabalho no campo. Emilly, uma bela moça loira com olhos esverdeados, havia se casado com Henry Jr. e se mudado para outra cidade e agora só lhe restara Richard, franzino, cabelos e olhos pretos revoltos, com manias de estudo, sonhos de grandeza e pés nas nuvens, um fiasco no campo, uma boca á mais para alimentar. Se perguntava o que havia feito de tão ruim para Deus lhe deixar justo um filho improdutivo que não era capaz de seguir seus passos. Bufou, pegou uma garrafa de água e saiu pisando firme de seu casebre.

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Rick então se acalmou e abriu a outra carta e sorriu com amargura, pois ao menos alguma "instituição" do país o queria: "Prezado Sr. Richard Darnell, através desse documento o convocamos para servir na gloriosa força de infantaria onde receberá treinamento com vistas a integrar o corpo de combate no Iraque. Servir a pátria é servir á Deus e á Rainha".

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Rick se remexeu e gemeu, não estava sonhando, estava lembrando.

Andretti
Enviado por Andretti em 18/06/2011
Reeditado em 18/06/2011
Código do texto: T3042769
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