Mentiras Incondicionais, amores condicionados: a história de Rick Darnell (Cap. 2)

2.1. Fantasmas da guerra

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Duas semanas depois, finalmente a voz de Rick retornou ao seu normal e retiraram as bandagens de sua vista para que voltasse a ver sem que a claridade ferisse seus olhos. Felizmente sua visão não havia sido comprometida, conseguia ver com nitidez, ler e escrever, o que era um alívio. Mas nem todas as notícias eram boas e só recebeu a pior delas nesse momento, quando se deparou com a ausência de sua perna esquerda e entrou em choque. A enfermeira Anna lhe dissera que os ferimentos foram muito graves, rompendo tendões, veias, necrosando a pele e obrigando á medida extrema de amputação abaixo do joelho.

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Rick berrou e chorou durante 1h até que o sedativo que lhe aplicaram fizesse efeito. Mas a mesma reação o acometeu durante 3 dias, até que finalmente se calou e decidiu guardar suas dores físicas e espirituais dentro de si mesmo, trancadas á 7 chaves. Ele ainda sentia sua perna intacta, sentia as dores dela, mas sabia que aquela parte física dele não mais existia. Voltaria para casa pela metade. Qual utilidade teria então no campo? Seu pai, que já o desprezava iria odiá-lo mais ainda, o considerando definitivamente um peso morto por não possuir as atribuições de seu falecido irmão Leonard no trabalho no campo de trigo .

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Algumas noites chorou, até que as lágrimas foram secando com o passar dos dias. Algumas noites tivera pesadelos terríveis com o front de batalha, até que com o passar do tempo deixou de sonhar qualquer coisa. Bloqueou sua mente e tentava fazer o mesmo com os sentimentos. Descobrira mais tarde que também contraíra uma lesão na coluna que embora não houvesse lhe tirado os movimentos inferiores, iria acompanhá-lo com dores periódicas que limitariam ainda mais “seus talentos físicos”.

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Como contrapartida por “suas perdas” em guerra, recebera uma condecoração de bravura, receberia uma ínfima pensão do governo britânico por sua “contraída deficiência”, além dos tratamentos de reabilitação necessários (hospitalares incluindo internação médica, remédios, acompanhamento psicológico e prótese para a perna). Logo seria trasladado para o Reino Unido e como sua estadia hospitalar ainda iria se prolongar em seu país de origem, receberia um notebook com acesso a internet para que pudesse se readaptar “ao mundo normal”. Realmente seu governo e o serviço militar britânicos demonstravam uma imensa preocupação com sua plena reintegração á sociedade pós-trauma de guerra, pensou com amarga ironia.

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Durante as semanas em que ainda ficara no Hospital Santa Helena sentira muita falta de companhia. Nunca fora um rapaz de muitos amigos, pois a maioria deles [amigos de escola] morava na cidade, bem distante de sua residência no campo e não se predispunham a enfrentar as longas horas de ônibus até seu casebre pobre. E depois, cada um terminou seguindo seu caminho, a maioria foi para as faculdades para as quais haviam se candidatado e uns poucos foram recrutados para o serviço militar. Mas não ter com quem ao menos jogar conversa fiada o deixava depressivo. O Hospital Santa Helena ficava baseado na Arábia Saudita onde os americanos que eram aliados dos ingleses possuiam influência (econômica e política). Dentro de duas semanas Rick embarcaria para a Inglaterra, onde ficaria mais dois meses internado no hospital Saint Victoria. A única pessoa da qual sentiria falta ali seria da enfermeira norte-americana Anna.

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2.2. Lar doce lar?

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Mais paredes brancas e agora com direito á frieza londrina em seu novo lar temporário: o hospital Saint Victória, suspirou Rick. Mas finalmente seu “notebook amigo com internet wireless” havia chegado. Ou seja, continuaria solitário no plano real, a não ser pelos exercícios de fisioterapia ou as escassaz sessões terapêuticas [que em si só desejavam inquirir se ele seria propenso á algum ataque de violência depois que se reintegrasse ao meio civil], mas teria a possibilidade de conhecer um mundo de novos “amigos virtuais” através das redes sociais. Como era sortudo! Realmente, estava se tornando um expert em ironia silenciosa.

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As dores em sua coluna ás vezes eram de uma intensidade absurda que precisava ficar dopado com fortes analgésicos e relaxantes musculares, isso quando a dor não o levava á inconsciência voluntária. O médico lhe dissera que uma cirurgia para tentar corrigir o desvio teria quase 80% de chances de lhe deixar paralítico, logo, conviver com a dor seria “mais razoável”. O bom é que ao menos ela era itinerante. Quando estava sem dor, participava do tratamento de reabilitação que incluía fisioterapia e preparação para uso de uma prótese. Isso, era algo com o qual ele decididamente ainda não se conformara e que alimentava as chamas internas de uma revolta muito particular.

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Seus pais não apareceram um único dia no hospital para lhe visitar desde que retornara á Inglaterra. Foram avisados por terra de seus ferimentos, de sua “dispensa militar honrosa” e de seu traslado para tratamento em londres, mas nos horários de visita Rick via os outros pacientes receberem a família, amigos, namoradas, noivas enquanto ele permanecia “assistindo TV”. Não recebera sequer uma carta de seus pais. Tentava imaginar qual teria sido a reação deles quando tiveram notícias suas e agora receava mais do que desejava um encontro. Sentia-se tão sozinho no mundo que pela primeira vez resolveu olhar com atenção para a caixa do notebook ainda lacrada sobre a mesa de cabeceira ao lado de sua cama.

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Talvez fosse hora de encontrar um outro lar...

Andretti
Enviado por Andretti em 18/06/2011
Reeditado em 18/06/2011
Código do texto: T3042973
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