Mentiras Incondicionais, amores condicionados: a história de Rick Darnell (Cap. 3)

3.1. Maravilhoso mundo novo

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E foi assim que Rick resolveu fazer da internet seu novo lar. Transitou por várias redes sociais Hi5, Facebook, MySpace, Plaxo, Google Profile até chegar ao Orkut onde descobriu que poderia ser tudo o que jamais fora e redefinir os caminhos de sua vida. Até porque o que deveria escrever em seu perfil: ex-combatente britânico no Iraque, ferrado na vida, sem dinheiro, sem faculdade, sem família, sem uma perna, cheio de problemas de saúde, franzino, sem olhos azuis ou verdes, sem emprego, sem rumo, mas com algum talento para escrita procura amigos? Óbvio que não extenderia á virtualidade o que de fato não queria nem em sua vida real. Mas quem ele poderia ser?

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E então Rick decidiu colocar todo seu talento como escritor á prova, construindo um personagem para si mesmo, utilizando-se das máscaras gregas teatrais (as personas da dramatização antiga sobre as quais tanto lera em seus tempos do colegial), tornando-se um mestre em construir e desconstruir a si mesmo. Criaria a si mesmo e amigos e colocaria um pouco de si em cada um, pois aprendera que em termos de escrita nada adquire significado para além de meras palavras vazias se não conter alguma raíz plantada em solo firme. Seriam seus super-heróis sem poderes sobrenaturais, seus alter égos com criatividade e imaginação á flor da pele, afinal não seria o primeiro a fazer isso, bastava reportar-se de Clark Kent/Superman; Peter Parker/Homem-Aranha; Matthew Murdock/Demolidor e tantos outros.

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Nunca havia sido eloqüente com as verbalização real, nunca havia seduzido massas, nunca havia sido popular como os jogadores de rugbi ou soccer, nunca havia conquistado o coração das meninas como os rapazes com bandas de rock, mas agora a internet lhe oferecia uma porta para utilizar seu maior talento: a escrita como seu maior bem. Capitalizaria suas palavras e seria “mais de si mesmo”. Estava animado e pela primeira vez em muito tempo sorriu.

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Inicialmente seu personagem se chamaria Edgar (como o poeta Edgar Allan Poe), seria alguém com um trabalho comum do cotidiano, mas com talento para os escritos poéticos, conhecedor das poesias dos grandes mestres, amigo, agradável, sensível, enfim, alguém que se pode ter por perto e confiar. E em menos de duas semanas seu personagem não apenas já havia agregado uma lista de amigos no Orkut, como também criara uma conta no MSN através do qual se comunicava mais diretamente com seus “novos amigos”, desabafava, ouvia desabafos, ria, contava piadas, aconselhava, consolava, trocava idéias e conhecimentos sobre qualquer assunto. Era fantástico como de repente se tornara alguém estimado e de quem as pessoas sentiam saudade quando precisava ausentar-se dos canais virtuais para seus exercícios de fisioterapia ou durante suas crises de coluna quando permanecia muito tempo entorpecido pelos remédios e não acessava a internet.

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Durante esse trajeto foi ampliando seu perfil, inseriu novas possibilidades ás quais sempre tivera vontade mas nunca conseguira realizar, tornara-se um apaixonado pelo fundo do mar, por mergulhos e começou a se dedicar a isso. Pesquisava na internet, lia ebooks sobre o tema, entrava em comunidades para aprender e logo já era um teórico aprofundado no assunto.

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Uma tarde cinza e fria de domingo, acabara de almoçar a comida insossa do hospital e se preparava para ligar seu notebook já que costumeiramente ninguém vinha mesmo lhe visitar, quando uma enfermeira o informou que havia alguém que desejava lhe falar. Ficou incrédulo, seriam seus pais finalmente dando o ar da graça? Nem sabia mais se queria vê-los depois de tanto tempo ausentes. Sobre o que conversariam? Rick ficou tumultuadamente apreensivo, não estava preparado para lidar com o turbilhão de sentimentos confusos que o invadiam nesse momento, mas tentou se acalmar, penteou os cabelos para tentar ficar “mais apresentável” e aguardou a porta se abrir como os gladiadores romanos esperavam as grades se abrirem para a vinda dos leões a quem teriam que combater.

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E então sua irmã Emilly entrou no quarto, sozinha. Ficou espantado, há muito tempo que não a via, na verdade desde seu casamento com Henry Jr. Filho de um comerciante do centro industrial de Manchester. Ela estava mais magra, com todo o gestual das moças da cidade, vestido cinza de lã, impecavelmente engomado, cabelos presos em um coque no alto da cabeça e luvas de couro fino. Não lembrava mais aquela garotinha de cabelos loiros esvoaçantes que costumava apostar corrida com os irmãos e se lançar no lago com roupa e tudo para no retorno de casa entrar no castigo dado por sua mãe pelas estrepulias dos três “pequenos selvagens”.

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- Oi Rick, como você está meu irmão?

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- Bem, na medida do possível e você e o Henry? Tem notícias de nossos pais?

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- Eu estou levando. Henry está bem, mas nos separamos já fazem seis meses. Moro sozinha no primeiro andar de um apartamento aqui em Londres. Nossos pais, estão bem.

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- Sinto muito pela separação. É definitivo?

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- Sim, mas foi o melhor para nós dois, ao menos não tivemos filhos para complicar as coisas. Estou trabalhando em uma firma de moda e estudando para ser estilista. Imagine só. – sorriu um pouco tímida.

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- Você sempre foi inteligente, mana.

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- Talvez, mas você é quem sempre foi o gênio da família. Á propósito, queria que você considerasse a hipótese de ir morar comigo quando sair daqui. Acho que você teria mais oportunidades na cidade.

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- Nossos pais não querem que eu volte, não é?

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- Eles já estão idosos Rick. Mamãe não tem estrutura emocional para lidar com mais uma tristeza depois da perda de Leonard daquele jeito e papai, bem, você sabe como ele é turrão e só tem olhos para o campo.

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- O pai ainda me culpa pela morte do Leonard, não é? Pelo que aconteceu naquele dia... – a voz sumiu na garganta do rapaz.

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- São águas passadas meu irmão. Prometa que vai pensar no meu convite e se cuide direito para se recuperar rápido. Sei que estamos afastados há algum tempo, mas você é minha família.

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Rick a olhou e viu rapidamente um lampejo de carinho aparecer nos olhos esverdeados da irmã. Então ela lhe acenou e saiu do quarto. Agora sabia que não teria mais sua antiga casa como pouso após a alta do hospital. Mas estaria Emilly lhe convidando por algum tipo de senso de responsabilidade forçada ou por pena? Isso tudo o magoava tanto. E afinal continuava tão sozinho no mundo real quanto estivera antes. Puxou o pc e o ligou...hora de ser outra pessoa, hora de ser alguém com quem as pessoas mesmo que virtuais de fato se importavam.

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3.2. Wan

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E foi assim que ao ligar o pc conheceu Wan. Ela enviara um convite para seu MSN e começaram a conversar. Ela o vira em uma comunidade do Orkut e gostara de suas falas e poesias, o achara um homem jovial, interessante e inteligente. A partir daí conversavam todos os dias, trocavam músicas. Um dia a moça de cabelos curtos e olhos brilhantes lhe contou que era casada e tinha um filho de 4 anos. Vivia em um casamento de fachada, não trabalhava ou estudava por determinação do marido e passava seus dias entre cuidar da casa e da família, dando algumas escapadas para o pc, onde tinha amigos e um mundo de possibilidades e liberdade que não encontrava na vida real.

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Da amizade evoluir para um envolvimento afetivo foi um pulo, pois ambos estavam extremamente carentes e logo estavam trocando juras de amor e carinho. Para Rick era um campo ainda desconhecido esse do “amor virtual”. Sua experiência com mulheres na vida real havia sido distinta de muitos rapazes de sua idade. Como nunca fora popular, poucas garotas mais novas ou da idade dele haviam se interessado em uma relação afetuosa e nas poucas vezes que ocorrera Rick entediara-se muito rapidamente, pois suas leituras, estudos e vida pobre no campo o fizeram amadurecer muito rápido, não tendo paciência para atitudes adolescentes. Isso terminou por levá-lo para os braços de mulheres mais velhas que começaram a ser seu grande foco de interesse por serem mulheres em sua plenitude, com vivência, maturidade, conhecimentos, fatores que o deixavam seduzido ao extremo. Sua primeira relação sexual havia sido com uma mulher 20 anos mais velha e ele se encantara.

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Mas Wan era uma garota interessante, apesar de ser uns dois ou três anos mais nova que ele. Havia tanta necessidade de receber e dar carinho, que ele resolveu se entregar á paixão que ali emergia, dedicando seu tempo, pensamento e escritos á moça. Ela se tornou sua musa inspiradora nas poesias, com ela sorria diáriamente e sonhava. Com ela sentia ciúmes por saber que a noite era com o marido que ela se entregava aos clamores da carne enquanto ele precisava resolver suas necessidades biológicas sozinho e disfarçadamente em um frio quarto de hospital.

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Wan não sabia de sua verdadeira história. A moça enlaçara-se no personagem Edgar e era por ele e para ele que dizia “Eu te amo”. Ás vezes, Rick pensava em lhe contar a verdade, mas receava que a moça lhe deixasse e pior, lhe odiasse a mentira contada. Como ela poderia amar alguém como ele? Qual futuro ele poderia lhe conceder? Então, tentava dar o melhor de si em termos de sentimentos, amanado-a como seu marido jamais o fizera, empenhando-se para fazê-la feliz e realizada naquelas horas em que passavam juntos para que pudesse compensá-la pela impossibilidade de um amanhã. Mas Wan começou a fazer planos para a realidade, a desejar sair do mundo virtual, terminar o casamento e recomeçar uma vida ao lado de Edgar com seu filho pequeno e isso assustou Rick. Ele a amava, mas não tinha condições de arcar com aquilo que começava a se desenvolver diante de seus olhos na tela do pc. Tentou se afastar, mas o carinho e a carência o impediam de concretizar o que de fato teria sido melhor para os dois.

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Um dia o marido de Wan descobriu o caso, rastreou emails e históricos do MSN, brigou com a esposa, a humilhou publicamente junto á família de ambos e resolveu lhe conceder uma nova chance de manter o casamento, uma vez que mesmo se sentindo traído queria posar de bom homem, de homem preocupado com o filho e com a família, generoso e compreensivo diante de uma mulher que não merecia seu amor. Esse fato terminou afastando Rick e Wan, mas não por muito tempo, pois logo encontraram modos furtivos de se comunicarem via internet e ela lhe contou dos suplícios que sofria e de como seu marido a tratava com desprezo no íntimo da casa, como lhe abusava sexualmente, como a traía com outras e como representava o papel de marido exemplar para sua família.

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Rick se sentia arrasado, culpado por toda aquela situação. Queria fazer algo, mas não sabia o que ou como. Tentou aconselhar a moça a se separar, ir para a casa dos pais, voltar a estudar e trabalhar para ter independência financeira e com isso cuidar dos rumos de sua vida sem se submeter a alguém que só estava com ela por vingança, orgulho ferido e possessividade. Mas Wan queria que Edgar [Rick] lhe “salvasse”, que ele a resgatasse daquela situação, que tomasse conta dela e de seu filho e a levasse para longe. Mas ele não tinha recursos para isso. Estava frustrado quando um novo golpe os atingiu: Wan engravidara de um segundo filho do marido e desejava que Edgar [Rick] os assumisse, ela e os dois filhos.

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Rick conversava com algumas amigas virtuais e tentava encontrar uma solução. Mas no final a solução foi desaparecer covardemente da vida de Wan. Não podia ajudá-la, não podia “se ajudar”. Agia como um canalha, mas era paradoxalmente a melhor coisa que podia fazer para ela e para si mesmo naquele momento. E assim, terminara seu primeiro amor virtual, mas outros viriam, pois a caixa de Pandora se abrira alimentando suas carências mais profundas e com elas conseqüências que seriam cobradas á seu tempo.

Andretti
Enviado por Andretti em 18/06/2011
Reeditado em 18/06/2011
Código do texto: T3043157
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