Alcatruzes da vida…

Alcatruzes da vida…

…Foram os infortúnios e as injustiças da vida, sobretudo estas, que permitiram o meu contacto com David, os infortúnios porque desde muito novo que eu teimei em prosseguir com um estilo de vida que se situava muito para além do que é permitido por uma convivência em sociedade, de facto desde praticamente os meus onze anos que nunca conheci outra casa que não fossem as casas de correcção e, assim que a minha idade legal o permitiu, as prisões Portuguesas, as injustiças porque foi uma injustiça que acabou por desabrochar no envio de David para aquela prisão onde eu me encontrava:

- Olá, eu sou o Brandão.

- Eu sou o David.

- Estás cá há pouco tempo?

- Sim, cheguei a semana passada e espero não aquecer aqui o lugar.

- Olha companheiro, todos dizemos isso quando cá entramos e depois…

- E depois, o quê?

- Ora companheiro, eu quando fui preso a primeira vez, jurei que seria a primeira e a última, já lá vão mais de vinte anos e eu ainda cá ando.

- Desculpa, tu estás preso há mais de vinte anos!

- Somando tudo, sim. A primeira vez tinha eu onze anos, depois foi sempre a somar.

- Que idade tens tu? És casado? Tens filhos?

- Tenho quase trinta e quatro anos. Tu achas esta vida nos deixa espaço para casarmos, pensas lá que alguma mulher está disposta a passar o resta da vida dela a andar de cadeia em cadeia para nos visitar, não. Quanto a filhos, nem tive tempo para tal, as poucas namoradas que fui arranjando nem me chegaram a conhecer como deve ser. Ainda bem. Tu és casado?

- Sim, sou casado e tenho dois filhos, um casal.

- Então prepara-te, qualquer dia ela farta-se e pronto, acaba tudo, ficas sozinho aqui entre estes quatro muros.

- Brandão, a Inês, minha esposa, não é assim, ela sabe muito bem que eu estou inocente e nunca me irá virar as costas.

- Ok companheiro, dá tempo ao tempo e depois me dirás.

Os dias foram passando, as semanas foram-se sucedendo, os meses foram-se acumulando uns a seguir aos outros…

- Meu amor, deixa-me só ir ali abraçar o meu amigo Brandão, foi o primeiro e grande amigo que aqui fiz, foi ele quem me alertou para muita coisa.

- Brandão, não te esqueças, eu faço questão de te vir visitar assim que me for permitido.

- David, desejo-te o melhor da vida, vai viver a tua vida com aquela mulher extraordinária que nunca te abandonou e vai ver os teus filhos a crescer, não te preocupes comigo.

- Estás bem enganado, o meu marido nunca vira as costas aos amigos, ele virá ver-te assim que puder, e enquanto ele não puder, virei eu.

David e Inês foram cumprindo, religiosamente, a promessa que fizeram a Brandão, até que este recebeu uma noticia inesperada:

- 222 o chefe quer falar contigo.

- Então rapaz, isso é que é ter sorte.

- Como assim? De que fala?

- O teu amigo lá do Porto responsabilizou-se por te dar trabalho e por ti, chegou uma notificação do tribunal, vais de condicional.

Saí o portão, abri bem os olhos e nem quis acreditar, David e Inês esperavam-me.

Brandão engole um pouco de ar e encara a jornalista que o entrevistava e prossegue o seu relato de vida:

- Quantos jovens se perdem na vida por nunca terem a felicidade de se cruzarem com um David ou uma Inês, foram eles que acreditaram em mim e fizeram de mim o marido amado e dedicado que eu sou hoje, lutando dia-a-dia para que os meus filhos, o pequeno David e a adolescente Inês, nunca se envergonhem do futuro do pai, porque o passado, que eles conhecem, está enterrado.

Lição de vida:

“É quando estamos no fundo do poço é que precisamos de um braço amigo”

Francis Raposo Ferreira

FrancisFerreira
Enviado por FrancisFerreira em 23/06/2011
Código do texto: T3052682