A agulha no calendário

A VERDADE

O mínimo as vezes pode ser tão máximo. Essa frase fixou-se na cabeça de Ana Paula como chiclete ruim cola no céu da boca. Um sanduíche com bastante bacon, e um pedido ao seu lado bastante inusitado: “um café gelado”. Era verão, mas era incomum, e jamais ela sonhou em ouvir aquilo na cantina da escola, esperando seu filho sair da aula. Um olhar rápido, algo diferente imperava ali no corpo e voz daquele pedido. Foi só tempo de levar Paulo, seu filho pra casa e voltar para a reunião de pais. O mínimo não estava nada sendo máximo nas ultimas horas, mas também pudera, por Deus: era uma segunda feira de inicio de mês, com reunião de pais e responsáveis na escola.

Não, ou pura coincidência, a moça do café gelado, cabelos vermelhos, pele muito braça e lábios grossos sentou ao lado de Ana Paula. A moça sabia sorrir, e após um ousado oferecimento de mão seu nome descobriu-se Ana Cristina. Sorriso+cumprimento tátil+cadeira do lado+espera=conversa sem compromisso... Descobriram-se, e na ousadia maior, como encanto de conto de fadas, as bocas de ambas também descobriram-se. Em frente a uma centena de pais, em frente a uma diretora conservadora, em frente a uma sociedade impura que esconde seus medos e vergonhas: elas eram uma vergonha, aberrações inúteis.

Ana Paula ouviu os primeiros gritos de uma mãe de aluno da qual ela nunca gostou, as contenções e obrigações de ódio e compreensão. Ana Cristina era apenas a irmã que foi no lugar da mãe ocupada, e por algum motivo a paixão ficou evidente daquela loucura frente a todo um mundo conhecido. Ela queria um café gelado, mesmo depois de descer as escadas da escola sob vaias, mas com o abraço novo que parecia fazer tempo estar em sua vida.

Noticias em jornal, comentário de colunistas maldosos, a mudança da escola das crianças. Os olhares todos diferentes, as palavras prontas, mas sempre o silêncio, porque as vezes ele dói mais quando se trata de preconceito.

Elas passaram a sair juntas. As palavras. As tantas tolices, as fantasias e sonho, o perfume, o jeito descompassado dos seres a atraiam só de um primeiro contato. E até que haja provas materiais do amor, as pessoas só desconfiam. Houve as provas materiais, e um dia antes de Ana Paula pegar Ana Cristina em casa, a mãe dela viu algumas cartas e chorou gritando, desesperada, ela não aceitou uma filha lésbica. Ana Cristina teve suas coisas materiais e toda a moralidade arremessada pelas paredes sem cor. Ana Paula chegou e ouviu os berros. Num contato desconexo o socorro entendeu-se e Ana Paula adentrou no lar enquanto as pupilas gigantes de lágrimas reclamavam a dor de uma surra que não parava apesar das fugas. Muitos xingamentos e a verdade, o nojo do desconhecido, do que a sociedade não quer, mesmo que você ame. Uma agulha em punha da mãe, a crueldade de como ela recebera na infância, fazer furos na pele da vítima. Sem pensar em outro ato, Ana Paula a levou para sua casa com todas as malas e uma receita do que nunca fazer mediante a raiva. Da janela meia luz a mãe viu o casal partindo enquanto colocava a agulha suja de sangue de volta pendurada no calendário.

A MEIA VERDADE

Obrigadas a conviver, pra solidão e a dor não dominarem, pro desespero de saber que não há volta, ser bem menor. Um olhar de repreensão, mas a humanidade e ciência das opções da filha, eram bem maiores nos pais de Ana Paula. Ana Cristina passou a ser encontrada triste pelos cantos, chorando, com saudade do lar. Uma briga mudou o rumo das coisas: “Com saudade daquela sua mãe nojenta, que te furou inteira por raiva?” A encontram diversas vezes desmaiada, o susto, a descoberta – Ana Cristina estava muito doente.

A MEIA MENTIRA

Um hospital, a preocupação. A pele alva e os lábios corados não existiam mais, quem era aquela mulher na verdade? Não importa, porque pensando no pior o amor reacendia. A madrasta que não era de conto de fadas, também aprendeu a cuidar da nova filha no leito do hospital. Por fé, por força, o dia a dia trazia melhoras. Conversavam numa manhã de domingo durante a visita fazendo planos: temos economias, e com elas daremos entrada numa casa só para nós, vamos levar o meu e seu irmão para morar conosco. Vamos ter um labrador, uma pequena horta, e principalmente: colocar sua mãe na cadeia, desculpe, mas ela merece. Assim que você tiver alta vamos fazer tudo isto. Ana Cristina só sorriu, disse sim, e apertou mais forte a mãe de Ana Paula.

A MENTIRA

Isso era vida real, ou fantasia? Chegara o dia da alta, e Ana Paula ouviu Bohemian Rapsody antes de chegar ao hospital. Subiu ao quarto saltitando como menina. Abriu a porta, respirou para fazer a surpresa, e depois da porta só a cama vazia. “É o quarto errado! Ou a mudaram de quarto. Ou ela está pregando uma peça”. Andou pelos corredores, tirou informações com a primeira enfermeira que viu: “Uma senhora, a mãe dela veio mais cedo e a levou, elas não te avisaram?” Um fio acendeu: a casa delas. Foi até lá em uma pressa meio apagada. Entrou no terreno, a porta estava aberta, e a casa vazia. Nenhum móvel, ou rastro de vida. Foi para a rua ver mais daquela verdade. Uma vizinha lhe disse: “Elas foram embora hoje cedo, venderam tudo e foram pro exterior querida, queres alguma coisa?” Sim, ela de volta. Talvez este fosse um querer para sempre,e o querer que ela talvez nunca descobriria era o fato de Ana Cristina nunca ter ficado doente, mas em conjunto com a mãe dela e de Ana Paula forjarem todas as cenas, porque ela queria livrar-se “daquilo” e não tinha coragem de simplesmente romper. Aquilo não era dor bem maior? Entrou na sala vazia, uma sensação ruim subia as paredes. Numa delas o calendário, a agulha: por que não mais dor? Ana Paula nem se molhou com a própria lágrima e tremendo retirou a agulha do seu lugar. Começou com picadas leves, quase sem ruído. Depois o profundo, os gritos e a vontade de não parar. Alguém a encontraria, algum dia, alguma outra dor ou riso.