O desenho

Todos os dias, naquele mesmo ônibus aguardava ansioso que chegasse a sua parada, quando subias e eu podia sentir seu perfume suave e encantador.

Olhava de soslaio seus cabelos escuros caindo sobre seu rosto sério, parecia um mar de preocupações, nada a desviava de seus pensamentos.

Desenhava cada curva de seu rosto, o contorno de seu queixo, a delicadeza de seus lábios, a doçura de seu nariz, tudo tão perfeito.

Você sempre descia em frente à fábrica têxtil para mais um dia de trabalho e eu seguia para a faculdade, caminhos tão distintos em um trilho tão igual.

Passava as horas absorvendo informações e rememorando sua presença, esperando pelo fim do dia quando novamente estaríamos juntos no mesmo transporte, retornando para casas em ruas opostas em uma cidade de luzes coloridas.

Aquela seriedade sem qualquer sorriso, a dureza de expressões em um rosto tão meigo e poético, deixando-me tão confuso e apaixonado.

Quem seria você? Para onde estaria indo? Para onde gostaria de ir? Talvez aceitasse um convite meu para uma jornada diferente...será?

Eu em meus jeans surrados, pouco mais de 20 anos, dividindo-me entre o curso de administração e o trabalho como barista em uma cafeteria, lutando para pagar ao menos metade das contas ao final de mês, com mãe doente e irmã endividada, como você poderia me achar interessante? O que eu poderia lhe oferecer?

Você, uma mulher com mais de 30 anos, sem aliança, talvez sem marido ou filhos, mas tão inacessível para um garoto como eu, aprisionado em seu mundo de rabiscos e poesias.

Todos os dias o mesmo ritual, o seu e o meu silêncio. O meu olhar te procurando. O seu olhar perdido na paisagem da rua. Assim corriam aqueles minutos eternos. Sua entrada e saída constantes da minha vida.

Até que um dia ao passar por você derrubei meus livros e ao me ajudar, encontrastes o desenho que eu vinha fazendo de seu rosto. Olhastes para mim confusa e depois sorriu. Mil sóis pareceram iluminar minha existência. Me entregando o desenho disse:

- Que tal um café?

Sorri em resposta, pois sabia que nada mais seria igual novamente.