TOQUE DE AMOR

O dia amanheceu assim, assim. Havia uma certa inquietação no ar, como se o tempo quisesse anunciar um presságio. Sabe aqueles dias, quando parece que as horas não passam? Pois é... Estava dessa forma.

Veridiana, que os amigos carinhosamente chamavam de Veri, também teve esse pressentimento. Alguma coisa estava por acontecer. Mas como o tempo passa e a vida segue em frente, ela encarou o dia e mergulhou nos seus afazeres. As atividades ocuparam sua mente o dia inteiro. Afinal de contas, o melhor remédio é não ficar imaginando coisas. E o dia transcorreu assim, nem lá, nem cá, nada de anormal no horizonte. Anoiteceu e a metódica Veri foi para o refúgio de seu lar, realizando o mesmo ritual de sempre: banho, jantar, notícias do jornal televisivo, leitura de um bom livro e dormir, não sem antes agradecer a Deus por mais uma etapa na vida. Assim Veri adormeceu. Trimm – Trimm – Trimm – O telefone quebrou o silêncio, tocou insistentemente no início da madrugada e uma voz pesarosa, sem muitos rodeios, noticiou:

- Seja forte querida Veri, o que tenho a falar não é nada fácil, é sobre o José Carlos. Ele faleceu nesta noite, o corpo já está no necrotério. Informou a amiga.

O coração de Veridiana disparou, um frio percorreu-lhe a espinha e com a mão trêmula desligou o telefone. As lágrimas entre soluços, caíram molhando aquele rosto vivido. Veri sempre fora apaixonada por José Carlos, mas quis o destino que os caminhos tomassem rumos diferentes. Com o coração apertado, nó na garganta, lágrimas ainda caindo, resolveu ir ao velório.

Aprontou-se e saiu no meio da noite. A tristeza foi sua companheira. Durante aquele curto, mas interminável trajeto, as recordações bailavam em sua mente. Como se houvesse entrado numa máquina do tempo, magicamente Veri retrocedeu no espaço, suas lembranças ganharam vida, pareciam reais tamanha a intensidade. E como se fosse um filme, as cenas passavam com uma nitidez impressionante. De repente sua juventude estava de volta, época que atuava profissionalmente no jornalismo, e nesse meio vivia às voltas com personalidades da política, esportes, cultura, convivendo com atores, atrizes, cantores e cantoras. Veri era uma jornalista bem “antenada” como dizem no jargão jornalístico.

Naquela época havia um cantor romântico que despontava, seu nome era José Carlos, mas artisticamente havia adotado “Cláudio Alves”. Dono de uma voz invejável e com interpretações simplesmente arrebatadoras. Veri possuída de um romantismo que lhe fluía à pele foi inexoravelmente atraída pelo artista. Cada dia que passava sua admiração crescia, aquela voz tinha o dom de invadir-lhe a alma e percutir sua emoção. Ela tinha liberdade de trânsito no meio artístico, por conta de sua atividade, portanto não lhe fora difícil aproximar-se de Cláudio Alves. Aproximou-se tanto que os caminhos se cruzaram profissionalmente, e ela passou a integrar a equipe de produção do artista. E foi inevitável que a admiração transformasse em algo mais, contudo esse sentimento era somente vivenciado por ela. O amor florescia a olhos vistos; Veri estava perdidamente apaixonada como se fosse uma paixão adolescente. A ternura que dedicava a Cláudio era impossível não ser notada. Viajava na alegria, deslizava nas nuvens, pelo simples fato de estar ao lado do homem que amava. Mas e Cláudio Alves? Bem, ele também andava deslumbrado, é verdade, porém tão somente com a sua carreira, que decolava em completa ascensão, shows e mais shows se sucediam país afora.

Nos momentos de calmaria, entre as apresentações, às vezes Cláudio ficava até certo ponto incomodado com o olhar enigmático de Veri, como a lhe desnudar o íntimo. Sentia que aquele olhar queria revelar-lhe algo. Mas Cláudio não conseguia enxergar o que estava explícito à sua frente.

A vida continuava... Com o sucesso, o assédio das fãs aumentava e ele não deixava de ter seus casos amorosos; isto machucava o coração da apaixonada Veri. Todavia a fama tem seu preço e as armadilhas da vida estão sempre armadas para aprisionar os desacautelados e assim, sem esperar, Cláudio Alves recebeu a notícia que iria ser pai e fora com alguém bem mais próximo que o artista se envolveu emocionalmente. Esse alguém trabalhava em sua equipe, chegando às últimas consequências de um relacionamento: gravidez.

Verdadeira bomba para Veri, pois não era ela a futura mamãe. Aliás, esse verdadeiro amor platônico nunca lhe possibilitou de fato um relacionamento amoroso, como ela gostaria que fosse, por exemplo o dia que quase foi beijada por seu amado dentro de um elevador. Quando estava para acontecer, o elevador parou num andar e pessoas estranhas entraram, foi por água abaixo o clima. E Veri ficou à espera desse beijo que nunca aconteceu.

Cláudio Alves assumiu literalmente a paternidade e, por consequência, a mãe de seu filho. A ilusão de Veri terminaria ali, a ilusão de tê-lo de fato evaporou-se, mas o amor não, este permaneceu intacto, impoluto. Parece que o mundo desabou sobre sua cabeça, sentiu-se de certa forma traída. Sua alegria cedeu lugar à tristeza. Depois, como era de se esperar, ela saiu de cena e seguiu outro caminho, mas sempre o acompanhava de longe, embevecia-se ao ouvi-lo cantando nas rádios, e vendo-o em programas de televisão. Fantasiava, imaginando que aquela canção fosse somente para si, mas no fundo sabia que não era. Assim a apaixonada Veri foi vivendo, nenhum outro homem atraiu sua atenção, ela continuou cultuando aquele impossível amor.

Ainda nesse devaneio, chegou ao local do velório. Entrou apressada e entristeceu-se mais ainda ante a visão à sua frente: naquela sala fria, quatro velas queimavam indiferentemente ao redor de um simples caixão, sem ninguém para velar o corpo de seu grande amor. Ninguém para render homenagens ao grande ídolo que ele fora da musica popular. Sentou-se ao lado e ficou contemplando o semblante sereno de Cláudio Alves, que para ela agora era simplesmente José Carlos. Sozinha naquela sala sussurrava palavras de carinho, acariciava com ternura aquela fria face, as lágrimas iam e vinham. Que ironia! Os carinhos que ela tanto ansiou proporcionar-lhe em vida, o destino permitiu-lhe somente na morte. O tempo passou, os raios do sol anunciavam um novo dia na vida da humanidade. Veri rezou pela alma do falecido, sentiu um ligeiro tremor no corpo quando seus dedos delicadamente tocaram as pálpebras de José Carlos, fechando aqueles olhos, outrora cheio de vivacidade, para a eternidade.

Levantou-se ainda hesitante e saiu. Lá fora o sol festejava um novo amanhecer, parou olhou para o céu, suspirou longamente, sentiu uma brisa acariciar-lhe a face, uma lágrima que ainda insistia cair, secou. A brisa suave na flor da manhã parece haver aquecido e confortado seu coração dolorido. Veri seguiu seu caminho, mas no meio daquela aragem uma voz, que ela não podia ouvir, murmurava:

___ Veridiana, minha doce Veridiana, como pude ser tão cego em minha vida? Como não enxerguei o teu visível e verdadeiro amor? Deixei-me ser levado por frívolas paixões, mas saiba que agora desprendido da fraca matéria, senti a força da energia reconfortante do seu toque de amor. A nossa história não terminou aqui. Até um dia na eternidade, querida Veridiana.

Veri continuou andando e quem por ela passava, percebia um indelével sorriso nos lábios, que nem ela sabia explicar o porquê.

FIM... Será?

À amiga Beny do Rio de Janeiro

Do livro Contos, En...cantos & Peripécias (Oficina Editores/RJ)

ANDRADE JORGE
Enviado por ANDRADE JORGE em 02/11/2017
Reeditado em 13/01/2018
Código do texto: T6160348
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