Sobre a Mãe que não tive...

Passei a noite em claro, matutando, pensando o que eu deveria escrever sobre uma Mãe estúpida. O dia raiou, o sono bateu, as pelancas de cima dos olhos caíram desmantelados sobre as inferiores. Abaixo, as olheiras parecem dois semicírculos cor de graúna. Estou parecendo uma mortalha ambulante. Trôpego. Um bêbado abestalhado. Não obstante, preferi postar a carta inacabada. Peço ao leitor e amigo Recantista que desconsidere o que não for de seu agrado e aos que gostarem, complete-a. Prefiro não continuar expondo minha Mãe com palavras desajeitadas, estrambólicas e horripilantes de significados, porém, honestas de sentimentos. Tenha um excelente dia; e espero que o leitor tenha uma Mãe infinitamente superior de sentidos e amor que a megera de Mãe que tive. Boa leitura!

Att.: Mutagambi

Minha estúpida, psicóloga, vidente, analfabeta, economista, venerada, comprometida, engenheira, educadora, alquimista, devota fervorosa e praticante de Nossa Senhora da Honestidade e acima de tudo, anti-ética, mãe dizia para eu tomar cuidado, porque, quando o filho perde a única e indissolúvel vergonha da cara, os pais podem caminhar de Ushuaia ao Japão por via única, que jamais a encontrará. Completava o sermão dizendo que vergonha é invisível e misteriosa como o sopro do vento, que faz farfalhar as folhagens e adernar embarcações de grande porte; mas jamais o causador tem a ombridade de assumir e dizer que foi ele quem causou tamanha dor e tristeza.

Quem sou eu para duvidar e contradizer as palavras diretas, transparentes e sinceras de minha incrível filósofa! Acima de engenheiro, sou e exerci a técnica, tal qual o juramento e realização de Arquimedes ao dizer que, se desse a ele uma alavanca e um ponto de apoio, moveria o mundo; e jamais te causei esse desprazer Mainha...; pois ao construir uma cabana de sapé qualquer, antes de pensar em mim, pensava nos raios de sol iluminando a sala durante o dia e os pingos de chuva importunando o sono de quem eu iria abrigar. Deveras, segundo a alquimista, respeito e comprometimento por quem quer que seja, transforma dignidade em caráter puro! Virtude, as quais a humanidade carece.

E não há canastras e mais canastras, imenso volume de ouro e prata no mundo, que pague quem possui e nutri-se diariamente com essas duas palavras, as quais estão catalogadas nos imensos e caudalosos dicionários, porém lidas e quase nada exercitadas. Às vezes as teorias, além de falharem, são desonestas e pecam pelo excesso. Tese filosófica que também aprendi com minha estúpida Mãe. Vindo dela, cada olhar no horizonte, cada piscado , cada mordida leve nos lábios, cada palavra soprada pela sua boca, era uma a pétala em forma de sentença filosófica que demandava sutileza para ser decifrada pelo ouvinte.

Por fim, como uma locomotiva que arrasta muitos vagões contendo materiais e alimentos necessários à sobrevivência humana, resumo dizendo que minha mãe foi estúpida demais, sobrava na ignorante arte de amar. Pois, ama de verdade quem educa para a vida. Ama de fato quem forma para a honesta interação social. Ama quem não se preocupa em educar o filho apenas para a família; e sim um Homem, um cidadão comprometido com o coletivo. Portanto, o verbo amar está para todos os dicionários, mas amar de coração e palavras é para meia dúzia de catados a dedo por Deus e dentre os selecionados pelo Criador, estava minha adorável e expressiva Mãe.

Ah, sobre a mãe que não tive... pois é, como escrever sobre o que não se tem, sobre o que desconheço. Convenhamos que é mais fácil escrever, falar e enaltecer o que se tem, ou teve. Concorda? Pois então, o leitor pode achar-me estranho e ingrato, o que deveras sou, mas entre tantas, uma coisa vos digo, minha ignorante Mãe, foi a Mãe mais Mãe que eu poderia ter. Mais: e ficaria imensamente feliz, se seus legados pudessem ser berrados para a surda humanidade ouvir.

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 08/11/2017
Reeditado em 09/11/2017
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